Costume de Natal : "O Madeiro e a Missa do Ga

Era no adro da igreja que o Natal se festejava.

Muito tempo antes se sorteara entre os lavradores, a honra de oferecer a árvore para a festa.

Pelo vigésimo quarto dia de Dezembro, juntavam-se os homens da aldeia. Iam em romaria, de pé sobre uma carroça que, indo leve, gemia vereda fora.

No bornal, pão e chouriço, um naco de presunto, um punhado de azeitonas.

E o garrafão de tinto, empalhado, preso aos varais pela asa.

Os machados afiados empilhavam-se num canto.

Contavam-se pilhérias. Alinhavam-se umas quadras. Soltavam-se umas cantigas.

Soavam risos e palmas.

No lugar destinado, erguia-se a árvore premiada, que seria abatida no seu fulgor e pujança.

Os homens saltavam alegres do tabuado, rosetas nas faces, machados em riste.

Erguiam-nos bem acima da cabeça nas mãos calosas, e desferiam o primeiro golpe:

- hemp!

Faziam fila, o segundo golpe soava:

- Hemp!

E assim se consumava o sacrifício, por longo tempo, soando em meio ao silêncio

- Hemp!

- Hemp!

Até que chegava a hora do golpe de misericórdia.

Faziam grande algazarra, berravam-se cautelas, davam-se passadas largas, retrocedendo às fosquinhas... como se esta fosse a primeira árvore derrubada nas suas vidas!

Uma vez caída, as enchós nas mãos experientes podavam os verdes ramos.

Iam-se buscar cordas, que se atavam aos extremos e se puxavam aos ombros.

- Eia..!. Eia...! num ritmo cadenciado pelo esforço.

Içava-se o tronco para o carro e passava-se à merenda.

Redobrava a alegria, atiçada pela boa pinga.

Enfim, rumava-se à vila.

A carroça, de pesada, mais gemia, lentamente, às passadas retesas das bestas.

Chegavam em frente da igreja, onde o padre os esperava, de aspersório e caldeirinha.

Tiravam com grande pompa o madeiro e depunham-no no adro.

O padre chegava-se perto, andava em volta examinando-o, ora abanando a cabeça ora franzindo o sobrolho.

Por fim conformado, mas nunca satisfeito, aspergia-o de um lado ao outro, borrifando-o ao de leve com água benta, murmurando sabe-se lá que mistérios.

E recolhia-se ao agasalho da ceia.

Juntavam-se galhos e giestas secas e ateava-se o fogo ao lenho.

A noite vinha descendo, a seiva ia crepitando, derramando, cedendo.

Na torre, tocava o sino:

- Dling dlong dling dlong... dling!

De todas as direcções vinha o povo convergindo.

Elas de xaile de marino com franjas, lenço de arabescos atado debaixo do queixo; eles de capote ou samarra, gola de pele de raposa, cajado na mão direita.

Passada a passada, iam tomando lugar em volta do fogo, que resplandecia e soltava estrelas de ouro no negrume da noite fria.

Elas entravam na igreja.

Eles juntavam-se mais: tiravam de sobre o ombro a garrafa de água-ardente, atada por um baraço à asa tosca de um copo.

Passavam-na de mão em mão, para aquecer a garganta, que protestava tossindo:

- Está mesmo boa!

- Mesmo boa, a bagaceira! Replicava outro, sério.

De dentro do templo, soava uma cantilena, uma voz se erguia, outras se lhe juntavam em coro:

“Da vara nasceu a vara

Da vara nasceu a flor

E da flor nasceu Maria

De Maria o redentor”

Subia o bafo no ar.

As crianças, agarradas à barra da saia das mães, esfregavam os olhos de sono.

O padre movia-se com lentidão, de paramentos brancos, bordados a ouro.

O sacristão e os meninos de coro, faziam gestos servis: ora lhe depunham nas mãos gorduchas e inertes o cálice; ora lho retiravam; mudavam a folha do livro; chegavam-lhe o incensório fumegante, que ele agitava com uma lentidão hipnótica, acima abaixo, esquerda direita... e os olhos dos fiéis seguiam-no, vidrados.

Murmurava algo que se não ouvia... e mesmo que ouvisse, quem destrinçaria palavra daquele fraseado monótono?!

Nas filas, as pessoas faziam gestos automáticos a um tempo, como se manejadas pelos fios invisíveis das marionetas:

Ora se erguiam, ora se ajoelhavam, ora se sentavam esperando...iam murmurando algo inteligível, de olhos postos no vago.

Excepto se encontravam outro olhar e se aproveitava o ensejo para um breve mexerico:

- Então a vizinha já sabe o que dizem daquela? Dizem que ela e o António é um Deus nos acuda!

- Ai coitado do marido, que é corno e ainda não sabe!

Subentendiam-se olhares contristados, misturados de sorrisos à socapa.

Uma cotovelada certeira, fazia-lhes retomar o lugar em cena e a deixa na ladainha.

Respondiam automaticamente o que não sabiam, ao que nem escutavam.

Era a tradição, em mágica coreografia.

No fim, lá iam em fila deitar a ponta da língua de fora, com ar contrito, em fileira cerrada.

O padre, retirava do fundo de um cálice de ouro, uma hóstia precariamente segura entre o polegar e o indicador e depunha-a complacentemente, de boca em boca, com ar de asco.

Se uma moçoila se apresentava, rosada, na sua frente, os olhinhos chispavam-lhe concupiscentes, como quem diz:

- Toma lá, mas não foi para tomar a sagrada hóstia que Deus te deus te fez uma boca tão redondinha... ai se te apanho a jeito!

De língua recolhida no céu-da-boca, não fossem os dentes macular inadvertidamente a sagrada ceia, a boca seca recusando-se a engoli-la como a uma pastilha, elas retiravam-se, de cabeça baixa, dando a Deus o sacrifício do acto por mor dos seus pecados.

Mais uma bênção, mais uma vénia e ala para a saída, às arrecuas quase até chegar à porta.

Cá fora, risadas altas, em volta das altas chamas.

Rubras as faces e as brasas, que iam consumindo o tronco, numa incandescência rubra, varando-o de lado a lado.

Sem pressa, os homens olhavam as mulheres, contrariadas.

Elas aguardavam-nos, em silêncio, a alguns passos.

Acabara-se a festa... Missa do Galo e Madeiro, só para o próximo ano!

Cada um se aproximava da sua consorte, sem uma palavra, um gesto.

O hábito acertava-lhes os passos, que soavam caminho abaixo, rumo ao casebre de pedra nua e telha vã, à enxerga de palha sobre os ferros pintados da cama, onde se consumaria o acto que seria Natal no fim do verão.

Maria Petronilho