O POETA DE CACHORRA
Eu não tenho quase nada a ver com isto. Nem contra e muito menos a favor. O fato é que sempre tive a vida marcada pelas cachorras. Não estas de saias curtas ou calças apertadas quase partindo a "perseguida" ao meio. Falo das outras, da raça dos caninos mesmo.
Quando era garoto, meu vizinho Gustavo tinha uma cachorrinha vira-latas chamada Abobrinha. Não sei o motivo de tal nome, pra mim ela parecia mais com animal do que com vegetal.
A danadinha vivia amarrada lá no fundo do quintal onde a gente gostava de brincar. Também não sei o que é que tem pobre pra gostar de amarrar cachorro com corda fraca. Vire e mexe a infeliz arrebentava a corda e corria atrás da gente. Eu era o menorzinho da turma e o primeiro da fila das mordidas. Ela vinha certeira bem no fundo das minhas calças. Quando não rasgava o calção, deixava a marca completa da dentadura dela na minha bunda.
Todos os meus amigos ficavam rindo, trepados no pé de goiaba e eu chorando de vergonha e de dor.
Voltava pra casa escondendo o ferimento pra minha vó não ver. Se ela descobrisse, das duas uma, ou eu ou a cachorra ia apanhar mais que galinha ruim pra largar o choco.
Não adiantava. Eu passava às vezes mais de mês sem ir brincar na casa dele, mas quando eu já estava pra esquecer o caso a desgraçada se soltava e me pegava de novo. Graças a Deus o pai dele se mudou pra outra cidade e levou a peste embora.
Quando era adolescente minha mãe não tinha o que fazer, arranjou uma cadela pra criar. Dizia ela: O quintal é grande e a gente precisa de um cão pra espantar ladrão.
No meu entender quem espanta ladrão é polícia. Eu olhava, olhava e não via nada de polícia naquele animal. Eu assistia na televisão um seriado chamado Rin-tin-tin, onde havia uma cachorra esperta e metida a soldado do exército americano. A bicha era sabida que só preá. Todo episódio ela salvava os soldados da morte iminente. Eu imaginava ver a bichinha lá de casa fazendo estas coisas.
A gente criava umas galinhas de capoeira no quintal. De vez em quando aparecia uma morta. Eu desconfiava que não era coisa de gente. Se fosse um ladrão o sujeito não ia deixar a galinha pra trás. Elas sempre apareciam faltando pedaço de uma perna, uma asa ou mesmo sem a cabeça.
Certa manhã levantei com a bexiga cheia e fui urinar no quintal. Lá em casa, só tinha um banheiro e alguém já estava trancado lá dentro sentado no trono. Ao abrir a porta da cozinha vi uma cena inesperada. A cachorra tava mordendo as costas da galinha pedrês que já estava agendada com a panela para o almoço do domingo. Quando a safada me viu largou a coitada e saiu correndo.
A galinha ficou paralisada não sei se de medo ou de dor. Eu cheguei perto dela e vi um buraco enorme em suas costas. Neste dia eu fiquei valente. Peguei a danada da cachorra pelas orelhas, amarrei com uma corda curta pra ela não ter espaço pra correr e larguei o chinelo nela até ela se mijar. Eu não queria matar, só me vingar pelo sofrimento da galinha.
Ela passou uns dias fugindo de mim. Quando ouvia minha voz, corria pro fundo do quintal e se entocava. Pensei em fazer um agrado pra vê se as coisas voltavam ao normal. Levei um prato bem cheio de comida e fiquei por ali chamando-a. Ela estava escondida atrás de uns tijolos e saiu toda desconfiada, que nem gato quando rouba peixe em cima do fogão. Veio se chegando com o olhar pra baixo, cheirou a comida e não se interessou. Deixei o prato lá e me virei pra ir embora. Foi só eu dar as costas a excomungada ajeitou a mira dos olhos e num bote certeiro agarrou meu calcanhar com os dentes.
Tentei me livra e sair correndo mais não teve jeito. Ela tava com uma força de sete cachorros juntos. Rasgou meu sapato com meia e tudo. Quando me livrei e sai correndo só vi a malvada com um pedaço da minha calça na boca balançando a cabeça de um lado pro outro. Nunca mais eu quis conversa com ela. Não faço nem questão de lembrar o nome daquela assassina de galinhas.
Anos depois eu estava casado e um sobrinho de minha mulher ganhou um cachorrinho da raça pinscher. Ele era muito pequeno, mas latia até encher o saco. Toda vez que chegávamos na casa da mãe dela o cachorro corria e subia no colo da minha mulher. Ela fazia carinho, brincava com ele, saia pra passear pela rua. Quando iam de carro ele só gostava de andar com as patas apoiadas na porta e com o focinho do lado de fora tomando vento e latindo pros pedestres.
Já vi muita gente ciumenta, mas esse cachorro superava qualquer um. Se ele estivesse junto dela e alguém chegasse perto, era mordido na certa.
Às vezes, eu ia buscá-la na casa da sogra e não via o safado em seu colo. Quando ia lhe dar um beijo de boa noite, o infeliz pulava bem na minha cara e me mordia. Levei umas oito dentadas desse peste de cachorro. Vez por outra ela ainda levava o danado pra dormir no nosso apartamento. Eu ficava com uma raiva tão grande que se eu o mordesse, era capaz dele morrer doente. Só me livrei dele quando me separei da mulher.
Numa ocasião, eu estava de paquera com uma mulher, dona de uma lanchonete. Toda noite quando chegava pra tomar minha vodka e relaxar, eu notava uma cachorra deitada por baixo de uma das mesas. Bastava a mulher sentar um pouquinho numa cadeira junto a mim, ela se levantava e vinha lamber os pés dela.
- Esta cadela é sua? Perguntei já com raiva da criatura.
- Não, ela aparece aqui toda noite e fica aí deitada até eu fechar a lanchonete.
Depois ela me contou da ração e do xampu que havia comprado pra cachorra. Eu estava apaixonado pela mulher e ela pela cadela lambedeira de pés. Conversa vai conversa vem a gente caiu no assunto, literatura. Eu falei do meu dom em escrever poesias e ela se mostrou interessada. Pensei comigo, é aí que eu vou entrar abaixadinho. Vou escrever um poema bem caprichado e deixá-la apaixonada.
Estava empolgado pra escrever e nem me dei conta de quantas doses de Smirnoff eu tomei. Rabisquei com letras trêmulas uns vinte guardanapos e nada. As idéias eram soltas e os versos não rimavam. Mas poeta que se preze não foge do combinado nem da missão impossível. Num clarão repentino abriu-se a janela da mente e lasquei a caneta pra cima e em menos de cinco minutos o serviço tava pronto. Fiquei alguns instantes admirando aquela obra com cara do homem mais feliz do mundo.
Tomei mais uma dose, desta vez sem gelo e sem água com gás, como era meu costume. Raspei a garganta pra voz sair num tom grave e meloso ao mesmo tempo. Chamei a moça na mesa e li pra ela aquela oitava maravilha da literatura moderna.
"Me olhas com cara invejosa pois sabes que tomarei teu lugar.
Tua boca agora será a minha, cuja língua fará teu serviço.
Teu balançar de calda será esquecido e o focinho perderá a vez.
Teus pêlos ora serão meus cabelos grudados na roupa dela.
Teu inhaca canina dará lugar ao meu perfume Francês.
Tuas pulgas e carrapatos, o vento se encarregará de levar.
Aquele teu latido atrevido ganhará palavras em minha voz.
Teu olhar dengoso não será notado e tua raiva por mim, apagada.
Também receberei os carinhos e o banho que ela te davas.
Tua dona agora será minha e por mais que tu me mordas,
nada mudará teu destino oh, cachorra.
Procura outro osso, pois este agora tem novo inquilino.
Estás dispensada invejosa".
Ao terminar a leitura fechei os olhos e fiquei à espera do aplauso e das palavras de agradecimento por parte de minha amada. Pasmem, recebi um copo cheio de água na cara e um monte de desaforos. Eu acho que cometi um erro ao me concentrar na bandida da vira-lata e esquecer de enaltecer as qualidades daquela que seria a mulher da minha vida.
A ingrata preferiu ficar com a cadela e me mandou passear. O pior ainda estava por vir. Os outros clientes da lanchonete souberam da história e passaram a me chamar de “o poeta de cachorra”.