25 - ARRE ÉGUA...

ARRE ÉGUA...

Quando me mudei para esta cidade, nos anos cinqüenta, ele já morava aqui. De onde veio não sei; só sei que ele era um homem sisudo, um cara fechado sempre.

A molecada não buscava aproximação.

Suas calças largas e metidas dentro das botas eram ao mesmo tempo diferentes de se ver. Não totalmente estranho, porque, às vezes, passava uma reportagem no canal 100 do Niemeyer no Cine Itabira onde aquele tipo de roupa sempre aparecia. Até mesmo o Presidente Getúlio as usava. Por aqui o mais parecido de uma roupa tão esquisita eram as calças do Chico Carpinteiro. Eram largas de cima até embaixo, não tinham aquele tipo de fofoca, uma perna se confundia com a outra parecendo mais uma combinação ou anágua.

Já o Gaucho, um homem que atendia pelo apelido do local de origem, era um grande carpinteiro cuja especialidade era construir barcos. Para mim estava um tanto deslocado, pois aqui nem tinha tanta água que justificasse pelo menos a vinda dele para Itabira. Para um carpinteiro naval estava totalmente fora de foco.

Ainda há por aqui os que dizem que ele veio no rastro da “Companhia Melhoramento” que construía a estrada de ferro na base de carroças e que ele era mestre em fabricar rodas de carroças e galeotas, consertar e fabricar arreios e outros apetrechos. Malhava o ferro incandescente na bigorna como poucos. Os aros, fechos e dobradiças de porteiras sempre com certo estilo de artista com muito zelo pela sua arte. Nunca foi de fazer algo por fazer sempre dava um toque refinado na sua obra.

Seu local de trabalho poderia ser chamado de oficina, tenda, barraca, enfim: qualquer coisa assim, pois, tinha um pouco de tudo inclusive no aspecto.

Sempre um naco de carne dependurado em uma corda estendida como varal com uma espécie de aro de latão nas extremidades para evitar que algum animal (rato ou gambá) se atrevesse a caminhar até sua comida.

Quando ele via que crianças começavam a ficar em torno da barraca, sacava um canivete de folha larga e comprida que até parecia um facão, cortava um pedaço de carne bem grande e fincava num espeto de ferro e o assava na brasa da forja, quando terminava de assar fazia um gesto para os meninos chamando-os com o canivete na mão e imitando como se estivesse cortando no ar. Todos saiam correndo para suas casas. Dizem que nestes momentos um sorriso ele ensaiava e ao trabalho retornava.

Aqui sempre chegava brasileiro de todas as regiões: Paraíba, Pernambuco, Juazeiro do Norte... Baiano então aos montes! A maioria deles constituiu família e é até comum ouvir por aqui os dizeres nordestinos “não se avexe, por mãinha, painho, ô cabra da peste ou cabra da moléstia”. E, gaúchos: bacalhau de porta de venda, cair de costas, cheirar a defunto, dar com os burros n'água... De vez em quando me pego dizendo: “nunca vi tanto cabeça chata! Arre égua”!

Desta forma nesta Minas, que são muitas dentro das Gerais vão se acomodando outras culturas e transformando costumes arraigados em um caldo especial que trazem um sentimento de acolhida, fraternidade e solidariedade especial dos mineiros, cantado em prosa e verso!

Outro sujeito havia, que andava pelas bandas de cá. Lenço no pescoço de um vermelho desbotado, sobre a camisa sempre um colete preto vestia, chapéu de feltro na cabeça preso ao queixo como um freio, era de longe a própria imagem do...

De perto, ficasse de pernas entreabertas e de braços estendidos lateralmente parecia um cruzeiro (grande cruz). Entretanto, seu apelido era Sertanejo. Só se for do Sertão gaucho... Sertanejo, aqui nas Minas Gerais, nos remete à imagem de algo ou alguém totalmente diferente do que ali se apresentava. Suas botas surradas nos pés, dentes de ouro demonstravam que talvez, em um tempo já bem distante, fôra um sujeito de posses. Pelo menos a pose indicava.

Como para mostrar que tristeza não paga divida, era um homem que vivia a assobiar velhas canções gaúchas talvez apreendidas quando era jovem, idade ali entre os cinqüenta ou sessenta. Estava sempre ali por perto do Cine Itabira. Nunca soube o que ele fazia para viver; se tinha família, com certeza a deixara em algum lugar deste país. Tinha fama de comedor de gambá, não perdia um que caísse nas armadilhas preparadas pelos empregados de um distribuidor de bebidas que tinha lá na Rua dos Operários.

Morar, para ele, qualquer lugar servia: Loca de pedra, Mina abandonada, Buraco do José do Santos ou no Sari do campo do Garajau. Onde quer que ele estivesse, indo ou vindo, a gente sempre passava ao largo para o outro lado da rua. Por preconceito não era, medo com certeza.

De qualquer forma a imagem dele ficou na minha retina incrustada na lembrança como tipo inesquecível de uma cidadezinha qualquer. Quando desapareceu sua falta só foi notada muito tempo depois, deve ter ido pelo mesmo caminho por onde veio, só que ninguém deu noticia.

Mas que a figura dele parece estar andando ali na frente do Bar Nova Iorque de um lado para outro assobiando feito uma alma penada!

Tudo isto só para falar de dois sujeitos estranhos.

CLAUDIONOR PINHEIRO
Enviado por CLAUDIONOR PINHEIRO em 25/06/2009
Reeditado em 29/06/2010
Código do texto: T1667437