Caminhos de São Paulo: Leste
SEGUNDO DIA DE CAMINHADA
Caminhos de São Paulo
Leste: Igreja da Penha
Caminho pela Radial Leste.
Os ônibus passam e os passageiros tiram fotos no celular daquela caminhante freak. Não ligo, sigo a minha estrada em direção a Penha, penso no destino, o caos não perturba a minha meditação ativa.
Passo a passo, vou provando a mim mesmo, que conseguimos manter a espiritualidade mesmo em meio ao mundo barulhento e violento da cidade grande.
O sol extrai suor da minha testa e ofusca a minha visão, ponho meus óculos escuros e acelero a caminhada, quero mudar de lado da pista, do outro lado, a sombra é mais amiga. Paro no semáforo, expero a minha chance de atravessar a rua; um carro da polícia para ao meu lado e uma policial vem em minha direção.
Será ilegal peregrinar em São Paulo?
Ela segura o meu braço e diz:
- Senhor, deixa eu ajudá-lo a atravessar a rua.
Há dias que tenho a impressão que ninguém mesmo vê.
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40 MIL GUERREIROS E UM PARAÍBA PEREGRINO
Caminho pelo bosque de Ronscesvalles e sou recebido por carvalhos, pinheiros e outras árvores anciãs que parecem estar ali apenas para me saudar. Não estão, é claro, mas me deixa ver o mundo do meu jeito, ok?
Saboreio aquela manhã que foi feita só pra mim. Sou egoísta em minhas fantasias, mas compartilho com vocês porque fico me sentindo culpado por viver tantas coisas bonitas. Compreendam, todo escritor (o que não é o meu caso e é ao mesmo tempo) adora se contradizer...
As placas que avisto estão em espanhol e também em basco, língua desse povo guerreiro cuja língua e cultura é única em toda Europa. Lembro do ETA e de tantas organizações que partiram da luta pacifíca para a luta bomba e penso nas ávores desse bosque que continuam nos dando oxigênio e sombra, pois não se dão conta que pertencem a esse povo ou outro. Coisa medonha é ser humano e lutar por algo que nunca vamos ter por completo.
"We don't own the land, the land owns us"
Um dia o homem aprenderá, até lá, continuará a brincar de brigar por tudo o que não lhe pertence; e esse bosque, onde eu caminho, já foi palco de tantas batalhas sangrentas em nome da terra, em nome de Deus, em nome do amor. É o que me diz uma estátua do famoso herói francês Roldán e uma placa que contam que naquele local onde eu piso, morreram mais de 40 mil guerreiros na célebre batalha de Ronscesvalles.
Reflito: pra quê?
Vai ver eles tinham os seus motivos mesmo. Na verdade pensei nisso, pois quando se anda num bosque completamente sozinho e nos deparamos com histórias de massacres, basta uma fézinha no álém para a gente pensar: e se os fantasmas desses 40 guerreiros ainda estiverem nessa floresta?
Daí rezo ao Senhor do Medo:
"Ó Senhor do Medo que nos leva aos devaneios;
Livrai-me dos boicotes da minha mente
Tudo o que eu quero é caminhar"
Mas é tarde demais, o medo já virou pânico e vejo os guerreiros pulando das árvores e me cercando. Apontando toda série de armas, eles não me deixam passar e entre eles, surge alguém que parece ser o líder e que fala algo comigo; não compreendo nem francês moderno quanto mais arcaico; mas sei que é o próprio Roldán.
Tento dizer que sou da paz, tenho cara, mas não sou mouro; ele não parece compreender e avança em cima de mim com uma lança.
Daí lembro das palavras mágicas do Reino das Terras de Vera Cruz:
- Brazil. Samba. Pelé.
- Brrazir? – Roldán repete e confirma – Sam bá? Pé Lé?
- Oui!
- Ça va bien!
E Roldán me deixa passar. Nada como a velha diplomacia brasileira para abrir fronteiras até mesmo entre as almas penadas. Definitivamente somos respeitados no futebol além do mar e da Terra.
Sigo meu caminho, cruzo a carretera e vejo uma placa que diz:
“ Aqui se reza
Una Salve
Nossa Sra. De Ronscelvalles”
Se é assim, eu rezo.
“ Nossa Senhora que mora nesses bosques, guie as almas desses 40 guerreiros para longe dos meus pensamentos e temores e de volta para a história”
Então me dou conta, não estou rezando em espanhol e se a Nossa Senhora de Ronscelvalles não souber português? Por isso acabo rezando uma Salve Nossa Senhora da Penha. As Nossas Senhoras que se entendam...