Sobre o consumo

Sobre o consumo....

"O consumo não é nem uma prática material, nem uma fenomenologia da "abundância", não se define nem pelo alimento que se digere, nem pelo vesturário que se veste, nem pelo carro que se usa, nem pela substância oral e visual das imagens e mensagens, mas pela organização de tudo isto em substância significante; é ele a totalidade virtual de todos os objetos e mensagens constituídos de agora então em um discurso cada vez mais coerente. O consumo, pelo fato de possuir um sentido, é uma atividade de manipulação sistemática de signos." (O sistema dos objetos - J. Baudrillard)

Levando em consideração a passagem acima sobre o consumo (escrita na década de 60) como podemos definir uma possível, ligeira, evolução para nossa época?

Levando em consideração que a coerência do discurso se deva através da publicidade, podemos dizer que esta se esforça em nosso tempo para deixar efetivamente de vender produtos para vender-se a si mesma? Consumimos o consumo?

A transformação sistemática do discurso publicitário em significante foi a forma, considero aqui aleatória devido ao princípio da mesma que funciona através da tentativa e do erro, estabelecida e abraçada pelo público consumidor como forma de satisfação momentânea sem que contudo precisem basear-se em um produto só.

Vejamos que o que importa no caso não é um carro, uma casa, um videogame ou um celular ultra modernoso. O que importa é estar inserido em uma sociedade que lhe outorga o direito, quase de forma ditatorial, de consumo. Você para ser cidadão, não precisa exercer funções públicas ou lutar pelo bem comum. Só se o bem comum for aquele que distribui na sociedade a igualdade de direitos ao consumo.

Vejamos nessa passagem uma clarificação dessa aceitação maior do consumo como não apenas a troca monetária irrefletida por bens duráveis ou não duráveis.

“Hoje vemos os processos de consumo como algo mais complexo do que a relação entre meios manipuladores e dóceis audiências. Sabe-se que um bom número de estudos sobre comunicação de massa tem mostrado que a hegemonia cultural não se realiza mediante realizações verticais, onde os dominadores capturariam os receptores: entre uns e outros se reconhecem mediadores como a família, o bairro e o grupo de trabalho. Nessas análises deixou-se também de conceber os vínculos entre aqueles que emitem as mensagens e aqueles que as recebem como relações, unicamente, de dominação. A comunicação não é eficaz se não inclui também interações de colaboração e transação entre uns e outros.

(...)

“Proponho partir de uma definição: o consumo é o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos. Esta caracterização ajuda a enxergar os atos pelos quais consumimos como algo mais do que simples exercícios de gostos, caprichos e compras irrefletidas, segundo os julgamentos moralistas, ou atitudes individuais, tal como costumam ser explorados pelas pesquisas de mercado.” (Nestor García Canclini – Consumidores e Cidadãos – Editora UFRJ – 4ª Edição - 1999)

O ato de consumo já faz parte tão intrínseca na vida das pessoas que sem ele toda a proposição de vida esvairia por água abaixo deixando uma lacuna essencial em suas vidas, já que a enorme maioria do sistema em que vivemos desapareceria.

Podemos considerar que atualmente as pessoas para sua própria satisfação, obtenção de prazer, tentam se afirmar constantemente como possuidoras da capacidade que as iguala em qualquer nível social. Pois uma Ferrari está a venda a qualquer um, basta se ter o dinheiro disponível para comprar uma. E inseridos nessa lógica, ilógica, todas as pessoas participam dessa “liberdade” social consumindo seus tênis contrabandeados, cds piratas e roupas falsificadas. Sem considerar que, não importando minimamente suas condições básicas de vida, mesmo o pobre possui celulares modernos, televisores, geladeiras, microondas em casa. Ele está participando ativamente da sociedade, obtendo prazer dela, podendo consumir e sendo dado o direito a tal.

Mas chegamos ao ponto onde o que interessa aqui não é o produto comprado, já que a cada semana lança-se o modelo mais novo e o melhor de todos os tempos. Mesmo que ele seja igual ao seu predecessor com uma ou duas diferenças visuais. Essa metodologia vêm a tona pela escassez cristalina da capacidade de alimentar o mercado com produtos efetivamente novos e de conseguir que os consumidores o comprem. Instaura-se então o reinado dos modelos e das séries.

Mesmo assim consideremos que essa constante renovação, sem fim, não dá ao consumidor o prazer que lhe promete, já que não lhe dá a chance de consumir tudo que oferece, seria até um despautério que o fizesse. A escolha de um produto é a recusa de toda a gama ofertada simultaneamente. Pautando o cidadão fora dessa capacidade de escolha, que lhe é ilusoriamente oferecida. Ele participa ativamente do consumo consumindo, seja lá o que for. Quanto mais ele participar desse direito social, melhor ele se sentirá.

O que nos trás ao problema central. Se ele consome o consumo os produtos que ele de fato obtém de nada servem, já que o que para ele é efetivo é a identificação com a publicidade em voga. Quando olha seu celular estampado em um outdoor, ou quando percebe que na televisão está o seu relógio ou seu cordão, seu boné e demais artefatos ele se insere no plano psicológico no todo social.

A publicidade monta um mundo ilusório a parte com suas ofertas e vidas eternamente felizes, essas que duram menos do que um digitar de senha do cartão. Pois do momento que se adquire um produto, no mesmo instante em que se vê possuidor dele, antes se sentindo único por estar se inserindo e afirmando sua posição na sociedade ele agora é afetado por uma angústia infernal que lhe diz a todo custo que deve partir em busca do novo objeto, para continuar participando desse fenômeno. Para continuar a perceber-se como cidadão.

O consumidor estava realmente atrás era da publicidade, essa que lhe faz querer partilhar da vida eternamente feliz que lhe promete, o que automaticamente se mostra uma falácia, mas que na mente consumidora não é falaciosa, pois se mostra verdadeira, já que ao comprar um produto ele se insere no mundo como cidadão consumidor, percebe rapidamente o erro que contém esse pensamento e é cometido logo após por novo desejo em um ciclo sem fim.

Deixamos de consumir por necessidade (exclusivamente), deixamos de consumir por prazer (exclusivamente) e somos condicionados a consumir para nos inserirmos em uma sociedade, para nos sentirmos cidadãos de direito. Pois se está com fome e não se tem como consumir comida que tipo de cidadania garantida pelo Estado é essa? Mas se eu consigo comprar minha “felicidade” ao garantir uma nova televisão para o meu barraco não importa muito que não tenha água encanada ou pintura sobre o reboco, pois eu sou cidadão! E acima de tudo isso que importa. Essa ilusão que importa. Compra-se a ilusão publicitária. Compra-se o consumo. Consumimos, no fundo, o consumo.

leandroDiniz
Enviado por leandroDiniz em 31/05/2006
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