Caminhos de São Paulo: Parte III

OLHOS DO PAVÃO

Sentado na floresta, vejo um pavão. Ele abre o seu leque e mostra as suas penas cheias de cores e olhos – eu compreendo a mensagem e fecho os olhos, e uso “ o outro olhar”.

Essa floresta é apenas um cenário – eu poderia estar caminhando para Santiago ou no Afeganistão e ainda assim veria o pavão.

Misteriosos são os olhos da alma que veem além da visão do corpo.

Será que sou eu que enxergo os olhos do pavão ou são os olhos do pavão que me enxergam?

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FONTE DOS DESEJOS

Descendo a ladeira da floresta de Ronscesvalles; dou adeus a montanha que me acolheu e paro a caminhada para encher o meu cantil numa fonte d´àgua. Surpreso, percebo que a fonte também é um poço dos desejos e ao invés de moedinhas, há garrafinhas com pedidos de papel dentro delas.

Penso na fé daquele povo que teve esse trabalho todo de escrever o que desejavam num papelzinho, e depois de enrolados, colocarem dentro de uma garrafa e do bolso ou mochila para chegar nesse ponto da caminhada e jogar a garrafa mágica dentro da fonte encantada.

Quais eram os seus sonhos? O que pediram? Saúde? Universidade gratuita para os filhos? Um aumento? Será que algum deles apenas fez um agradecimento?

Deixo a fonte de lado e sigo meu caminho. Já consigo enxergar a torre da igreja de Nossa Senhora de Ronscesvalles lá embaixo. Paro alguns instantes para comer algumas uvas pastas e um peregrino evangélico passa por mim e pergunta se caminho por Jesus.

- Eu caminho por mim mesmo – respondi e parece que a resposta irritou o homem, que foi embora sem falar comigo.

O Caminho tem dessas coisas.

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FREGUÊS

Aparentemente, eu teria que chegar a Frequesia por letra própria, portanto, parei de ficar irritado com as pessoas que não queriam me dar informações e prometi, não saio mais de casa apenas com mapa de cabeça.

Fui caminhando e cantando e seguindo uma canção que tocava na minha cabeça:

"Perguntei a todo mundo

Por onde vai o caminho

E ninguém me respondeu

Vou viajando sozinho

Deus na frente, Deus na paz

Nas alturas onde Ele está

Vou viajando com Deus

Um dia eu tenho que chegar

Jesus Cristo vai comigo

Vai na minha companhia

Para um dia eu entrar

Dentro da soberania

Todo mundo quer ser grande

Me deixaram eu ficar só

Vou viajando com Deus

Estou com a força maior"

Olhei para o lado e ví esse senhor negro, bem alto, de cajado e com um chapéu na cabeça; ele também estava vestido de peregrino. Eu já não estava sozinho e fui seguindo o homem que parecia estar indo para o mesmo lugar que eu.

Sorri quando ví as placas, tinha chegado na Freguesia. Subimos uma ladeira bem íngreme, e com muito esforço, pois àquela altura, eu já estava exausto, cheguei ao topo da colina e fui percebendo o formato da igreja, e lá de cima, podia ver toda a cidade.

Os meus olhos se encheram d'àgua, mas eu não estava chorando, é que passou um carro a toda velocidade por uma poça e lama nos olhos de peregrino é refresco, né? Mas não importava, eu tinha chegado; daí olhei para o lado para agradecer ao senhor por ter me guiado, e percebi que fica difícil mesmo saber o que se passa fora ou dentro da sua cabeça.

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QUEBRANDO AS REGRAS

Uma das coisas mais lindas de ser um rebelde de si mesmo e poder quebrar todas as suas regras.

Depois de ter caminhado por todo o dia, quando atravessava a Avenida São João rumo a Santa Cecília, um metrô parou na minha frente; e ficou evidente, que era o Universo querendo me dar uma mãozinha, ou melhor, uma caroninha.

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O ALEIJADINHO

Na Espanha eu passaria desapercebido, no metrô de Sampa, todos olhavam esquisito para aquele sujeito de chapéu e cajado na mão, em pé, naquele trem lotado.

Uma moça muito bonita, porém, olhava para mim de forma diferente. Vai ver se apaquerava comigo, e eu de certa forma, sentia um quê de constrangimento e vaidade; se mesmo sujinho e suado, a moça me paquerava, isso significava que eu ainda valia alguma coisa no mercado livre da caça humana. Foi então, que ela vencendo a timidez, levantou-se de seu banco e disse para mim:

- Moço, por favor, sente-se. O banco é do senhor.

Só ai entendi que ela estava sentada num banco para deficientes.

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HOSPEDARIA

Quando cheguei ao albergue, ao invés do Curia, veio ao meu encontro, uma moça muito bonita de olhos cintilantes e me deu as boas vindas, com pão, vinho e uma sopa deliciosa.

- Bem vindo, peregrino! – disse ela e eu percebi, que todos os dias quando chegamos na hospedaria da nossa casa e encontramos alguém que amamos, estamos definitivamente percorrendo o Caminho do Amor.

Fazer os Caminhos de São Paulo, tem dessas coisas, você chega no albergue e se sente em casa.