Assim caminha o Brasil
Há poucos dias, ou melhor, há poucas noites, saí com um grupo de amigos e fomos à esbórnia. Bebemos todas e mais catorze e voltamos a pé para casa. No caminho, somente a lua como testemunha, fizemos algazarras das boas. Apedrejamos lojas, bancas de jornais, telefones públicos e outros alvos que não deveriam estar em nosso caminho, atrapalhando nosso passeio.
Chutei prazeroso a lixeira de plástico até dividi-la em pedaços. Mas lamentei sujar a barra de minha calça nova. Só paramos quando ouvimos a sirene da polícia que vinha estragar nossa diversão. Cada um correu para o lado e nos safamos. Em casa, olhando para o espelho, gabei-me da aventura e ri a gosto da viatura.
Ontem pela manhã, antes de me trocar para ir ao trabalho, tomei uma boa xícara de café e me encaminhei à sacada de meu apartamento para fumar. Enquanto provava o cigarro, olhei para baixo e vi pessoas caminhando para lá e para cá. Quando terminei, joguei a bituca na calçada, sem me importar se alguém passava pelo local. Azar dele, pensei. Afinal, senti preguiça de sair da sacada e ir apagar o cigarro na sala do meu apartamento. Ótimo cinzeiro, a calçada. Vejo guimba nela todos os dias.
Quando voltava para casa, não lembro quando, após um dia estafante de trabalho, visto que me considero laborioso, produtivo, cumpridor de meus deveres, atravessei três faróis vermelhos. Sou um homem de bem, de bons modos e índole imaculada e não suporto que a cidade interponha obstáculos ao meu direito constitucional de ir-e-vir. Além disso, pertenço à parte abastada de nossa sociedade. Profissional do serviço público, tenho boa remuneração e sempre ganho um por fora quando o cidadão tem pressa na entrega do documento solicitado em minha repartição.
Não gosto de faróis. Sempre que posso, ignoro-os. Quando em meu apartamento, mirei o espelho, divertindo-me com a ousadia. Se multado for, apelo para a justiça afirmando que jamais passei naquele cruzamento. É outro direito que tenho. Aliás o Estado só deveria nos outorgar direitos. Não deveres.
Mas cidadãos de bem, como eu, estão sempre sendo motivos de troça ou ingratidão pelos puristas, moralistas e samaritanos. Minha empregada, por exemplo, reclamou comigo porque lhe paguei o trabalho da semana com cheque. Ela não gostou de ser obrigada a tomar ônibus para ir à agência e pegar fila de quarenta pessoas à frente até descontar o cheque no caixa.
Ora bolas. Não gosto de andar com dinheiro no bolso, mesmo quantias irrisórias como a semana dela. É muito perigoso neste país de ladrões e baderneiros. Faço muito em pagá-la semanalmente, como os americanos. Só falta a infeliz exigir que eu a registre em carteira, pague fundo de garantia, férias e outras bobagens. Imagine! Que petulância. Ainda mais comigo, que cumpro meus deveres, pago todas minhas contas em dia.
Não foi fácil chegar onde estou. O que hoje tenho é fruto de muito trabalho e abnegação. Não é qualquer um que vai me fazer de bobo. Sou rápido no gatilho e ajo com astúcia antes que alguém tente me enganar.
Sei que línguas malignas alvejam-me de impropérios. A mim e a outros que compactuam do meu pensamento. Não me importo. Não perturbam meu sono. Afinal, há muitos como eu em nossa sociedade. É a nossa herança histórica e cultural. Se muitos roubam, enganam, surrupiam, vilipendiam, dissimulam, se aproveitam dos meandros da lei para se salvar, transferem a culpa para outrem, não assumem erros, apenas exaltam acertos, pergunto: por que não, eu, também?