Pisantes

Deixei a panela no fogo para assistir a água ferver. Meus pés, mortos, careciam de cuidados especiais desde que somatizaram o peso dos ombros e do peito. Eu queria caminhar na praia, tentar uma corrida quem sabe, voltar a andar de skate... até mesmo calçar chinelos me fazia falta – mesmo eu fingindo não sentir.

Saindo do trabalho passei na farmácia, comprei novos instrumentos e minha cor preferida: melancia. Melancia de vermelho, de rosa e de tudo o que parece carnaval. Tanto tempo tentando esconder, fingindo indiferença, tanto tempo parecendo ter perdido a sensibilidade. Eu fingi não enxergar o que sempre fora meu, largando num canto escuro e apertado que qualquer sapato pudesse ofertar.

Morfina para a dor. Xelocaína para... o quê mesmo? Enfim, tomei um banho quente e vesti o pijama preferido de algodão. No sorteio sem critérios, Bob Dylan me pareceu inspiração. Acendi as velas de essência que ganhara no natal, semi-esquecidas na estante intocável. Inspira... solta... inspira... solta... lembrei da voz de Sônia, minha professora de ioga do último inverno. Spinning no verão; ioga no inverno. Cabelos curtos no verão. Chocolate no inverno.

Tinha esquecido do meu verão desde que o inverno me amorteceu numa quarta-feira a noite, estendendo a aliança que tínhamos nas mãos. Desde então o inverno nunca mais saiu de mim. Até ontem, quando resolvi de novo que queria ser verão. Mas eles ainda invernavam escondidos de mim. Não poderia dividir minhas metades em duas estações – talvez em outros tempos, mas chegara a hora do inverno partir.

O instante que pende entre as primeiras bolhas de fervura e a completa ebulição é ínfimo. Imagino a rapidez que o fogo toma conta da pele e espero um pouco mais para que o calor sinta que seu reinado chegou. Morfina para a dor. A água arde a pele, que derrete a tinta, que derrete na carne, que expõe o avesso. Morfina para a dor. A única tinta que agora me estampa é vermelha, e logo vai sumir. Antes de apagar, dou boas vindas ao meu verão.