Velório de Rua
Depois de um dia exaustivo, o caseiro da igreja foi deitar-se. Tudo estava resolvido afinal. Não iria acontecer mais imprevistos. Pelo menos foi assim que combinaram na reunião:
- Ninguém.
- Ninguém!
- Não importa de quem seja, ninguém é ninguém.
- Ninguém.
- Pode ser até eu, ou ele ou até você. Ninguém.
- Até eu?
- Até você.
- Tudo bem, ninguém.
Dormir com a consciência limpa dos fatos trás um sono tranqüilo, embalado nas nuvens. Doze badaladas. Noite de domingo. O pio da coruja.
- Amor, tem alguém chamando lá na frente.
- Não é ninguém. Durma amor, durma.
- Eu ouvi. Vá lá ver.
- Que saco!
O portão da igreja não era tão perto assim, logo ele tinha que se arrumar. De fato havia alguém. Alguém não, “alguéns”. Várias pessoas estavam no portão lateral da igreja, que dava direto ao salão de festas. Uma voz rouca:
- Até que enfim. Pelo amor que você tem a Deus, lembra-se da dona Francisca? Ela veio a falecer agora pouco. Necessitamos do salão para o velório.
- Vocês terão que me desculpar, mas não posso mais emprestar o salão. Nem para velórios, nem para festas.
- Como não? Pois há dois dias atrás estava acontecendo um velório.
- Exatamente por esse motivo. Vocês morrem de mais. A conta de luz veio muito alta. E a vigilância sanitária não permite eventos assim.
- Eventos? Que hipocrisia!
- Ela era tão fiel à Igreja. Vinha todos os domingos, sempre pagava o dízimo em dia, nunca deixou de cumprir suas obrigações paroquiais e santas. Morreu procurando um chinelo, coitada. – disse uma voz lá de baixo. Aparentava ser de uma senhora.
- Perdão, sei que ela é uma boa alma, com toda certeza irá para o céu, mas infelizmente eu não posso abrir o portão para o velório.
- Não tem nem onde ser velada.
- Olha, preciso ir. Já dei as informações. Passar bem, e meus pêsames.
Velório essas horas. Poderiam escolher a hora de dormir com os santos.
O caseiro voltou à cama, disse à mulher que não era ninguém de tão importante assim.
Eram quase duas horas da manhã, quando novamente, vozes vinham do portão. O caseiro levanta-se e vai até o aglomerado de fiéis. Para sua surpresa, havia mais de cinqüenta pessoas lá, incluindo a defunta.
- Mas, o que está acontecendo aqui?
- Viemos fazer o velório. Onde já se viu a igreja não liberar o salão para isso. Aqui é a casa de Deus.
- A casa de Deus e do caseiro também. Eu já falei, se fosse por mim vocês até enterrariam essa dona aqui, mas o caso é a vigilância sanitária que impede. Tá na lei.
- Na lei de Deus não.
- Se vocês permanecerem aqui, vou ter de soltar os cachorros.
- Solte-os. Não vamos desistir. Nem que eu tenha de enviar uma carta ao Papa.
- Melhor irem comprar formol então.
- Que atrevimento – disse aquela voz da senhora baixinha.
- Não ligue Margot, sua irmã terá um bom descanso. Então faremos aqui na rua.
Não há quem impeça eles. Rua não é da igreja. Lá ficaram, até amanhecer. Flores, ornamentos e tudo o que tinha direito. Logo o povo foi se reunindo, aumentando a “muvuca” e vendo o inusitado velório de rua.
O caseiro teve de ficar trancado em casa. Pedras voaram nas janelas, pessoas fazendo passeata. As mulheres chorando, músicas fúnebres, carros buzinando. Um caos se instaurou. O bispo teve que aparecer, a polícia para apaziguar, repórteres para inventarem, e nada da vigilância sanitária. O caseiro não agüentava mais. Pegou sua espingarda, saiu para fora, atirando em qualquer coisa que via pela frente. Felizmente não acertou ninguém. Exceto o chapéu de um dos senhores que estava no velório e o caixão da velha. Depois do surto, silêncio. Após o silêncio, um som. Um ruído. Uma voz fraquinha. Das flores levantou-se a dona.
- Desculpem-me pessoas, mas onde está o meu chinelo?
O fato foi divulgado, o caseiro tornou-se um santo ressuscitador. Sua arma, a glória da igreja. E a vigilância sanitária? Nada.