Currículo Literário

Eu sempre travo quando vou falar sobre mim para estranhos. Naquele pequeno momento entre a frase "Pessoal vamos fazer silêncio, com a palavra o Fábio, que vai nos falar um pouco sobre ele" até o momento em que começo falar, ocorre uma concentração monstruosa para eu poder me fazer entender. E isso toma ares de tragédia quando tenho de responder à pergunta: "Qual é a tua escola literária?" ou "O que te levou a escrever essas coisas todas?" Naqueles segundos de silêncio, vem-me à mente tudo, ou melhor, quase tudo o que poderia ser minha escola literária. Lembro das noites em que via Beethoven socando o teclado do meu computador porque a tecla Ctrl travava, e ele não conseguia tirar o som ideal dela. Alan Moore ficava sentado à direita da minha cama, olhando-me e acariciando a vasta barba com sua mão crivada de anéis. Ele me dava medo. Dostoievski e Edgar Alan Poe atiravam dados, divertindo-se em um jogo que Neil Gaiman acabara de inventar, e ele mesmo servia a dose de vodka para aquele que perdia. Havia um louco tocando baixo no meu roupeiro, e às vezes, ele até cantava Engenheiros do Hawai e Sonic Youth, mas quase sempre só cantarolava. Charles Bukowski desenhava cavalos nas paredes enquanto Jack Kerouack, jogado no chão, revirava os olhos com um sorriso idiota no rosto. Geralmente dava briga quando as musas de Frank Miller apareciam. As criaturas que habitam as profundezas das escrituras de Tolkien urravam debaixo da minha cama, às vezes, mas só às vezes. Nessas noites eu puxava a minha coberta devagarinho sobre meu rosto e depois de estar coberto, eu espichava a mão para apagar a luz. Eu lutava pra pegar no sono antes que aparecessem os malditos heróis da Sessão da Tarde. Se Ferris Bueler chegasse a aparecer ninguém mais dormiria.

E então eu respiro fundo depois desses segundos de divagações e opto por dizer outra verdade, uma mais coerente. O fato é que eu já criava histórias antes da minha mãe me ensinar a ler e escrever, e agora resolvi escrevê-las para os outros lerem. Certamente isso não é o que se pode chamar de currículo literário, mas esses caras do meu quarto moldaram o que sou hoje. E isso também não quer dizer muita coisa. Só não quero que eles saiam de lá. Embora eu ainda tenha medo do Alan Moore.

Fábio Monteiro
Enviado por Fábio Monteiro em 22/06/2009
Reeditado em 26/06/2009
Código do texto: T1661522
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.