O VÔO DO PARDAL

O silêncio foi repentinamente despedaçado por estranhos ruídos que lembravam mãos amarrotando folhas de papel, asas se debatendo, folhas farfalhando em grande amontoado e qualquer outro esboço de barulho um tanto misterioso. Porque não era uma coisa nem outra na minha forma de pensar naquele exato instante. É que já passava da meia noite, há pouco eu e Ana acabáramos de chegar e nos distraíamos lendo nossos e-mails e atualizando nossos blogs. Daí a razão da estranheza. E o som inusitado se repetiu novamente, duas, três vezes. Então nos assustamos. Seriam, talvez, baratas sorrateiras se esgueirando atrevidas no templo sagrado do meu lar, oriundas sabe lá de onde? Esperávamos que não, sobretudo porque as detestamos e delas temos asco com toda força d'alma.

O inesperado rompimento da calma noturna vinha do quarto contíguo ao nosso escritório. E voltou a se repetir, agora de maneira tão estrondosa e aguda que nos levantamos como se impelidos por molas poderosas, correndo na direção do local suspeito, eu já devidamente armado para enfrentar cara a cara o que quer que fosse. E foi então que, o coração saltitante mas o rosto abrindo-se em sorrisos, vimos o causador daquele estrupício todo: um pardal. Sim, o pequenino e desajeitado passarinho batia asas em desespero no aconchego de minha moradia. De algum jeito inexplicável ele encontrou uma brecha nalguma janela do nosso apartamento, adentrou justamente no horário em que tínhamos saído e, sem noção coitado, depois de entrar não sabia mais o caminho de volta, a saída.

O que podíamos fazer ante circunstância deveras insólita? Quando o avistamos e ele nos viu percebi o pobrezinho terrivelmente assustado, presa de indescritível temor, seu coração quase explodindo no peito em apressado movimento de batidas fortes e apreensivas. Cheguei a pensar que ele sofreria um súbito infarto e morreria ali mesmo no chão onde se debatia quando nos aproximávamos. Ao nosso menor movimento, ante o mínimo gesto de aproximação ele alçava desengoçado vôo e se batia nas paredes, nas estantes, nas janelas fechadas. Corri, entre uma tentativa e outra de pegá-lo, e abri de par em par a do escritório esperando vê-lo sair por lá enfim e seguir para seu habitat natural. Mas ele não conseguiu, como se não estivesse vendo o caminho da liberdade amplamente aberto e à sua disposição. Ana também tentou pegá-lo para, como queríamos, soltá-lo na escuridão da noite, porém cada vez mais se tornava difícil essa tarefa. Houve um momento em que a atemorizada avezinha rodopiou por entre os livros, birôs, computadores, impressoras, roteador e outros trecos do escritórios, levou um baque na parede e caiu atrás de um arquivo. E silenciou.

Voltamos à internet sem atinar com a solução adequada para resolver o impasse causado pelo pássaro invasor. Pensei até em deixá-lo onde estava e esperar o amanhecer de um novo dia. Só que eu ficava imaginando como seria passar a noite escutando o bichinho fazendo zoada na tentativa de sair da prisão em que se metera e não poder agir de nenhum modo para ajudá-lo. Por longos cinco minutos não o escutamos, ele parecia absorto e calmo por não nos enxergar, por se imaginar, enfim, bem escondido e só. Foi então que Ana resolver averiguar como ele estava, e o pardal, ao vê-la, assustou-se e desembestou num vôo adoidado, passou perto da janela aberta como se não a avistasse, de modo que não logrou sair, foi de encontro à parede e caiu novamente. Desta feita bem ao meu lado. Nesse instante infinitesimal, aproveitando estar ele meio desnorteado, armei o bote, abri a mão direita, estiquei o braço e, rápido e sem lhe dar qualquer chance para escapar, peguei-o finalmente. Ufa!, respirei aliviado. Eu o olhei e ele me olhou com os olhos esbugalhados, o medo estampado e eu sorri de sua tocante ingenuidade. Segurando-o delicadamente caminhei até a janela sentindo o pulsar atribulado do seu peito, ele prestes a sofrer um infarto, seus pequenos olhos engrandecidos pelo medo angustiante. Sorri novamente para ele quase a querer confortá-lo, coloquei o braço para fora, no espaço do quinto andar e abri a mão para libertá-lo. Ele pareceu não compreender aquele instante surpreendente, sem acreditar que ganhava a liberdade tão facilmente, então balançou a cabecinha e piscou os olhos, escorregou em minha mão como se a tomar impulso, agitou as asinhas e voou. Um foguete não seria mais rápido do que quando ele disparou, as asas a mil por hora, voando abruptamente como se não entendesse o meu gesto de sensibilidade. E desapareceu na noite.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 20/06/2009
Reeditado em 30/07/2021
Código do texto: T1657876
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