O SABIÁ E O PINTASSILGO

O SABIÁ E O PINTASSILGO

Estava eu no quintal, ali, à cata das résteas de sol que, neste julho tem andado tão arredio, e faltando mais de dez dias para a entrada oficial da estação a que chamamos de inverno.

Eis que subitamente ouço, um toc, toc, surdo, a intervalos regulares; fui-me aproximando do local devagarzinho para descobrir o que estava acontecendo. Para minha surpresa, a dois palmos de meu nariz, pude observar que se tratava de um sabiá, que se atirava na janela do quarto, voltada para o poleiro onde o mesmo se encontrava. Deduzi que ele se refletia no vidro, daí a teimosia persistente e ânsia da bela ave se juntar ao outro que estava ali tão perto, mas, com aquela barreira incompreensível e intransponível para o mesmo.

Fiquei ali quase extático e iniciei timidamente, baixinho, para não o espantar, um diálogo com aquele ser de canto inefável, possivelmente visitante assíduo do meu quintal, onde disponibilizo água sempre limpinha para os pássaros que me dão tanta alegria com sua visita, e, que de vez por outra vão soltando seus trinados em forma de agradecimento. Para minha surpresa ele não fugiu mesmo estando tão perto de mim. É sabido que o sabiá é uma ave extremamente desconfiada, e arisca, à semelhança de seu primo português o melro, por isso evita a proximidade com o bicho homem.

Ali, pertinho de seu poleiro, depois de eu lhe ter dirigido a palavra e lhe ter argu-mentado que não adiantava se atirar contra a janela, pois acabaria machucado. Então o sabiá me encarando frontalmente, se exprimindo num linguajar diferente daquela que eu conhecia, excitado, de penas ouriçadas na cabeça parecia me reclamar, culpando-me pelo fracasso de não poder se juntar ao outro do lado de lá.

Certamente excitado pelo inusitado acontecimento, de noite sonhei que um belo pintassilgo, de tamanho um pouco maior que o normal, de cores de predominância escarlate, estava dentro de uma peça que fica nos fundos da casa, possivelmente atraído pelo arroz que meu sonho para ali transplantou, posto ali não sei por quem para tomar sol, coisa bem estranha, pois nunca soube que o arroz pronto para ser cozinhado precisasse de sol para os fins a que estava destinado - coisas de sonhos... Mas, o sonho continuou agora entre aflições e contradições de o querer e o não poder. Queria aprisionar o pintassilgo por ser uma ave tão minha conhecida desde os tempos de minha infância, mas na outra ponta da balança pesava-me a consciência, ainda que inconsciente, do não poder tolher a liberdade de tão belo espécime, que para lá de sua bela plumagem é dotado dum canto de extraordinária beleza.

Ora, porque nos sonhos não há lógica, ainda que um Carl G. Jung nos proponha o contrário, fico intrigado. Com certeza não foi só pela diferença da plumagem entre o sabiá e o pintassilgo; pelo canto dos dois também não foi; pois aos dois acho encantador seu porte e seu canto, embora musicalidades diferentes, mas capazes de deleitar a qualquer mortal menos sensível.

Porque terá sido então esse sonho? Será porque num momento de êxtase que não pude extravasar em altos brados, ali, diante daquele pequeno milagre, me deixei transportar acariciado pelo aconchego e o calor dos cobertores, para meus tempos de criança? Mistérios da nossa mente... e, porque são mistérios, continuarão inacessíveis à semelhança do outro sabiá do outro lado da vidraça. .

13.6.2009

Eduardo de Almeida Farias
Enviado por Eduardo de Almeida Farias em 17/06/2009
Código do texto: T1653603