LIBERDADE OU UM SORVETE COM CALDA?

Avistou o andarilho no acostamento.

Um suspiro saltou das profundezas do peito espalhando-se por todo carro.

_ O que houve? Perguntou o motorista atento.

_ Você não viu aquele homem carregando aquele enorme saco nas costas? Pobrezinho...

_ Talvez ele não seja tão pobre assim.

_ Com não? À uma hora destas, caminhando sem ter pra onde, sem teto pra morar.

_ Talvez ele tenha escolhido não ter um teto. Talvez ele seja feliz assim.

Será? Seguiu matutando pelo resto da viagem.

Tentou sorver a liberdade daquele andarilho como quem tenta descobrir o gosto de um sorvete com calda exibido em um cartaz de propaganda.

Acabou encontrando a prisão.

Debruçou-se sobre o cárcere particular que criara ao redor de si, sob pena perpétua.

A casa, o apartamento, o carro, o emprego, as roupas, os sapatos, as bolsas, os perfumes...

Viajou no tempo.

Ao passado em que desejou - com a ardência dos jovens anos - lançar-se pelo mundo, munida de uma mochila mágica desintegradora de fronteiras.

Às tentativas inúteis de convencer os familiares de que uma provável ancestralidade cigana devesse ser preservada.

Não lembrava quando, nem por que, a mochila foi substituída por um bilhete de entrada na faculdade.

Colocar-se, agora, no lugar daquele andarilho, sentindo por ele a liberdade era o mesmo que descobrir o gosto do sorvete com calda sem prová-lo.

E se tivesse apostado em sua mochila? Talvez, ignorasse a falta de um teto fixo com um automóvel na garagem. Provavelmente suas roupas e calçados tivessem serventia mais essencial do que abrigar as etiquetas das marcas...

Estacionou em casa pensando.

Sabia que se aqueles pensamentos criassem voz, o companheiro deduziria que a tal pandemia fizera mais uma vítima em viagem. Calou-se.

Refugiou-se com os peregrinos devaneios na biblioteca, e deu de cara com o velho Ghandi a sorrir-lhe da capa dura de sua biografia, escrita pelo jornalista Louis Fischer.

Pegou-o nas mãos folheando-o e redescobrindo as imagens do indiano enrolado em parcos lençóis.

_ Como é viver sem prisões, Sr Ghandi?

A resposta veio de um sorriso sem dentes na voz do silêncio.

Teria que abrir o freezer e tomar o sorvete.

Por onde andaria a mochila abandonada? Suportaria tanto peso nos ombros?

Teria que cerrar todas as grades.

A liberdade teria que ser experimentada em pequenas doses...

Degustaria o sorvete, logo após o jantar.

Léia Batista
Enviado por Léia Batista em 15/06/2009
Reeditado em 15/06/2009
Código do texto: T1650151