A CARTA DO TRABALHO DOS KU-KLUX-KLAMINHONEIROS
A CARTA DO TRABALHO DOS KU-KLUX-KLAMINHONEIROS
(Crônica)
O fatalismo existencialista de Hamlet e o surrealismo enigmático do paradoxo existencial das bruxas são elementos convincentes que fortalecem nossa descrença na existência de ku-klux-klaminhoneiros. Mas que eles existem, existem!
Nem por mera coincidência guardam semelhança com os rodoviários do sindicalismo primogênito da Carta del Lavoro. Os ku-klux-klaminhoneiros são exemplares extraídos do relicário de equívocos do tempo no exato instante de reinvenção da roda. Asfaltonautas fundamentalistas no itinerário da odisséia bem-te-vi. Sibemóis desafinados que se desprenderam dos acordes patrióticos do hino nacional brasileiro. São os trabalhadores “mau-mau” do Brasil.
Eventualmente, ku-klux-klaminhoneiros são semideuses rebelados do operariado político unido pelo casamento com a política operária. Seres mitológicos concebidos segundo o último êxodo cultural do país. Formais ou informais, sindicalizados ou não. Empregados e empregadores de si próprios. Estradeiros exilados na suprema corte de justiça do trabalho confinado na cabine de seus rancorosos caminhões. Raramente se envolvem com os comportados aldeões anticomunizadas do sindicalismo global. Eles têm seus próprios tribunais regidos por uma constituição de normas sigilosas do trabalho extravagante. Neles, condenam e são condenados, reclamantes e reclamados de uma causa própria única. Mesmo que não tenham causa nenhuma...
Era noite tenebrosa na RJ-116. Naquela estrada mal conservada, as curvas sinuosas desapareciam na densa vegetação do escasso acostamento. Podíamos sentir a aproximação de veículos em direção oposta, por causa das luzes deflagradas pelos faróis que salpicavam de luminosidade vaporosa as folhagens dos barrancos marginais. Meu frágil automóvel conduzia nossas crianças para o início das férias. Sempre esperávamos que, um pouco mais à frente, algum trecho em linha reta aliviasse nossos nervos e nos pusesse a solvo daquela bravata sertaneja.
De repente, porém, parecendo uma gigantesca serpente de olhos coloridos rastejando entre as muralhas da neblina, moveu-se em nossa direção um comboio de carretas enraivecidas. E uma delas, como que obedecendo ao comando dos faróis do líder, deslocou-se do centro do comboio e emparelhou com outra, ocupando, em fila dupla, a única pista da estreita rodovia que, incontinente, virou uma espécie de sinistro beco sem saída. Não houve tempo de nada. Despencamos aos gritos ribanceira abaixo, indo parar entre as macegas lodacentas de um sombrio brejo de taboas. Minutos após, ainda podíamos ouvir ao longe as ruidosas gargalhadas dos ku-klux-klaminhoneiros que, indiferentes, prosseguiram em indolente procissão buzinando nas entranhas da noite numerosa. Pareciam membros desgarrados de alguma sociedade secreta marchando para sua última assembléia de julgamento da humanidade sobre rodas – seu impiedoso Armagedom.
Ah, os ku-klux-klaminhoneiros! O asfalto é a ribalta de suas obscuras decisões. Movimentam-se nas rodovias segundo seus próprios códigos de enigmas indecifráveis. São resultados e resultantes dos encantos de todos os recantos do país. Nunca se pode saber se estão de volta ou de partida. São como os Lobos Haoma despertando a sonolenta madrugada. Incorporam-se pelas estradas como patrulhas em manobras arriscadas. Ao pé da letra dos estatutos consolidados nas páginas dos pára-choques de suas bestas alvoroçadas. Inundam os noturnos vales com seus metálicos berrantes, parecendo anunciar à vastidão do mundo o fim da contramão do apocalipse dos desencontros marcados.
Eles existem, porque ainda existe a roda mal resolvida. A esperança de transporte para o lado oculto de suas almas inquietas. Invisível refúgio de suas reivindicações improcedentizadas. Porque não há outro foro mais competente para aplicação de suas normas e convenções politicamente invertidas. Porque ainda podem ficar voluntariamente excluídos da linha de fabricação econômica de bandidos republicanos. Porque ainda não acreditam num país onde o mais alto estágio da felicidade social é o patamar global da mera sobrevivência. Onde ainda não compartilham da mesma mesa os miseráveis que não podem governar a própria casa e os bem-aventurados que desgovernam a nação inteira.
Eles não estão certos nem errados. Quando é preciso, interrompem as rodovias cariadas mais intransitáveis, promovem as greves de fome própria e proclamam os piquetes não convencionais como antibióticos ministrados no tratamento de suas infecções democráticas. Atirar-nos fora de suas estradas é uma forma de romântico protesto convenientemente desorganizado. Quem sabe, além do complexo da culpa histórica por violação sistemática dos direitos fundamentais dos antigos ku-klux-klaminhoneiros organizados, livres e aceitos.
Agora é tarde. Não há mais tempo nem espaço no papel ou na história literária das crônicas anárquicas. Esta composição não pode, mas deve ser concluída de forma bem-comportada. Afinal, os ku-klux-klaminhoneiros são anarquistas de bom-gosto. Como todos os “bom-bom” trabalhadores “mau-mau” deste país. Dos trabalhadores sem-terra aos latifundiários sem-trabalho. Dos amados sem-alimento aos alimentados sem-amor. Todos somos auto-retratos falados dos ku-klux-klaminhonriros. Autores e cúmplices, vítimas e algozes, todos presos nas imagens distorcidas dos espelhos do narcisismo corporativista. Operários individuais do culto ao delito coletivo. Não somos um fato histórico, mas somos uma lenda concebível.
Agora é tarde. Fomos contaminados por um síndrome sem gênero. Uma hipnose rodoviária de velocidade sem destino. Somos neo-retirantes urbanos das vidas secas. Escapistas da morte prematura fazendo a diferença. Miséria banalizada por tanto juízo, comovendo a vergonha da cidadania de acaso. Cantiga de roda de uma nota só. Carta de amor de uma palavra só. Não somos contra nem a favor. Do contrário. Do favor. Do tráfico. Da influência. Do prestígio. Do sexo. Da impunidade. Da guerra. Da droga. Da violência. Do poder.
Ah, o poder de um parto feito na rua sob o olhar do Cristo Redentor...
Afonso Estebanez