Sobre Ester

Tarde de sexta-feira. Dia dos namorados. Leve frio de começo de junho, nesse clima nunca radical do Estado do Rio, sudeste do Brasil, sul da América, entre os trópicos. Ponho roupa preta, acabada com meu paletó, preto, alemão, de fino corte. É meu único paletó, usado em ocasiões especiais apenas – e, na maioria das vezes, nem nestas. Saio então pelas ruas. Chuva fina. Abro meu guarda-chuva e vou, fugindo das rodas dos carros nas poças. É uma tarde triste. Mas não estou triste, embora meu estado seja, digamos, solene. Meu último encontro com Ester foi na quarta-feira, na casa dela. Naquela tarde, por horas eu a ouvi em seu lindo quartinho branco, com flores e listras verde claro.

Não estávamos sós, eu e Ester. Éramos quatro naquele pequeno cômodo que mais parece um pequeno templo: eu, dois amigos e ela. Um dos amigos fazia as perguntas. Outro apontava sua câmera de filmar fixada em tripé. Eu apontava também uma outra câmera, também num tripé, mas com movimentos de ida e volta nos detalhes do corpo de Ester, que estava sentada numa confortável cadeira. Imagens em ida e volta, zoom e não-zoom. Detalhes das mãos que não paravam de gesticular, com braços que moviam-se pela emoção daquilo que ela nos falava, terminando em um dedo em riste. Detalhes de sua boca com honrosos dentes amarelados. Detalhes de seus olhos expressivos por trás das lentes que refletiam, às vezes, e de forma mal calculada por nós, a luz difusa de um refletor. Seus cabelos brancos, suas rugas impregnadas de história e poesia, dor e cultura. Cultura poderia ser o nome dessa mulher. Uma mulher, espantosamente, não-triste. Na quarta-feira eu não estava com meu paletó preto.

Só que hoje meu novo aguardado encontro com Ester seria apenas virtual. Marcamos às quatro na casa do amigo, a fim de dar uma primeira olhada nas imagens captadas na quarta-feira. Ester na tela. Ela ficou bem na tela. E o que ela faz na tela do televisor não pode ser feito por qualquer mulher. Ela nos conta sobre sua infância no Egito, sobre sua vida. Ela nos fala sobre morte. Sobre a morte de parentes ante a foice do nazismo na Alemanha. Sobre a morte do pai – a qual presenciou. Sobre sua passagem na Inglaterra, por Oxford, se não me engano. Reclama que na escola primária, ainda no Egito, as crianças aprendiam “apenas” três idiomas, e que o resto ela teve que aprender sozinha. Ela tem muita história pra contar. Muita. O muito que nos conta, vira e mexe é arrematado com um sorriso maravilhoso – não que ela seja de rir à toa.

Em nossa frente fotos que ela deixou em nosso poder, para serem digitalizadas. Muitas fotos em preto e branco, evidentemente, de pessoas em sua maioria mortas. Algumas delas mortas em circunstância que não é difícil imaginar. Acho que não me convém – nem a mim e nem a ela – entrar em detalhes agora.

O que conto é parte da pré-produção do documentário que começa a ser realizado numa parceria entre eu e meu amigo Elano Ribeiro, e com a valiosíssima colaboração de um novo amigo, Janér Baptista. Esther (sim, com “h” no meio) é o verdadeiro nome de uma incrível senhora que conhecemos, a qual nos oferecerá, para um novo projeto, a matéria prima: ou seja, o “livro aberto” de sua vida. De família Judia, nascida no Cairo, formada na Inglaterra, Esther é uma mulher brasileira com oitenta e seis anos. Uma cidadã do mundo. As nuances do mundo de Esther, só poderão saber aqueles que assistirem ao trabalho pronto, que pretendemos entregar ao público ainda este ano.