Ladrão de música clássica
O delegado sentou. Olhou a relógio quase escondido na última prateleira de uma estante e, como de costume, chamou o auxiliar.
- Estou aqui, chefe.
- O que temos para hoje?
- A noite foi tranqüila, apenas um ladrão que pulou o muro da casa do dr. Machado para roubar alguns discos. Levou somente quatro. Quando a viatura parou, não correu nem resistiu à prisão.
- Mas esse cara é louco? Pular o muro do dr. Machado? Não sei como não levou um tiro!
- Não levou porque não tinha ninguém em casa.
O delegado ingeriu rapidamente o café, tirou o paletó, afrouxou a gravata e encaminhou-se para as celas. O condicionador de ar quebrado e o calor impeliam-no a desejar roupas mais leves.
Sentado na ponta de uma cama de jornais improvisada, o ladrão levantou-se tão logo viu o volumoso homem entrando pelo corredor. Ou o medo ou o constrangimento do furto causavam-lhe receio. Os olhos iam e vinham de um a outro lado das grades inferiores da jaula.
O delegado suspirou forte, olhou bem as roupas simples e o jeito do matuto.
- Desde quando você rouba, filho?
- Ontem, a primeira vez. A voz saía entrecortada e baixa.
- Quem anda por maus caminhos acaba se lascando. Você pulou um muro de mais de três metros de altura, entrou na casa do homem mais rico da cidade, teve a pachorra de escolher o que ia roubar e pegou apenas quatro discos?
- Isso mesmo, doutor.
- Doutor eu não sou. Não fiz doutorado, respondeu o delegado, sorrindo e quebrando o gelo da conversa que pretendia informal. Rapaz muito educado e silencioso. – Abre a cela aqui. Vamos conversar na minha sala. Lá pelo menos tem ventilador. Então mate minha curiosidade, filho. Você entrou na casa do dr. Machado, forçou a porta para roubar quatro discos? Por que não roubou uma caixa inteira?
- As portas estavam destrancadas.
O delegado procurou o boletim de ocorrência. Portas destrancadas. Ele não as forçara. O calor o forçava agora a desabotoar os pulsos das mangas compridas, arregaçando-as à altura dos cotovelos.
- Por que você roubou quatro discos? Achou que venderiam mais para comprar droga?
- Não. Peguei-os porque precisava exatamente daqueles quatro.
- Precisava? Como assim precisava?
- Toco piano. Perdi o emprego oito meses atrás. Sem salário, não pude continuar minhas aulas. Um colega me deu uma cópia de método de música. Nela estão Chopin e Schumann. Precisava desses dois compositores. Depois devolveria os discos.
Um riso largo da autoridade policial rasgou a delegacia, despertando a atenção dos funcionários que davam plantão naquele domingo de manhã. Da sala vizinha trouxe um teclado de três oitavos embaixo do braço.
- Toque alguma coisa de Chopin. Quero ver e ouvir.
Deitou-se no sofá. O pianista advertiu que provavelmente não sairia o mesmo som, a mesma qualidade, o mesmo impacto.
Mesmo impacto verás no teu lombo caso não consigas executar Chopin, pensava de olhos fechados, ensaiando uma madorna.
Apontou a mesa do delegado. Fixar bem o teclado para não fugir.
- Sinta-se à vontade, filho. A casa é nossa.
Depois da instalação, estalou os dedos, baixou a cabeça, fechou e abriu os olhos em concentração. As mãos baixaram sobre o instrumento, o delegado sentou-se, ficou de pé, sentou-se novamente. Em dezoito minutos de execução seus pensamentos transbordavam lembranças diversas.
O auxiliar entrou na sala.
- Onde estão os discos que ele pegou?
Tempos depois, no teatro municipal, o pianista agradecia com gestos e palavras ao delegado e ao dr. Machado, que dividiam o mesmo camarote.
- Afinal, perguntava o delegado ao dr. Machado, não valeu perdoar um crime como este?
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 11 de junho de 2009.