O que eu tenho a ver com isso?
Éramos sete mulheres cruzando os Estados Unidos de carro, numa viagem iniciada na Califórnia que nos levaria aos parques temáticos da Flórida. Uma espécie de Thelma e Louise a la Alvim: minha irmã, eu e nossas cinco filhas. Ao longo do percurso percebíamos, in loco, os efeitos da crise – estabelecimentos comerciais fechados, um programa na TV a cabo mostrando como deixar uma casa atrativa para venda, providência importante em tempos de oferta maior que a demanda... Paradoxalmente, também os sinais de má utilização de recursos saltavam aos olhos: desperdício de alimentos nas porções gigantescas, quantidade desproporcional de lixo gerado, gasto descontrolado de água e energia elétrica. Na enésima vez em que comentávamos o assunto - por causa do estranho hábito sulista de retirar as folhas secas das ruas com turbos potentíssimos de ar comprimido, em lugar da primitiva vassoura -, minha filha caçula não conteve a irritação: “E o que nós temos a ver com isso, mãe?”
Surpreendi-me com a insensibilidade do comentário. A vida tem lá seus ciclos: lembrei de quando eu, mais ou menos na mesma idade dela, também pensava que as preocupações de meu pai, quando demorávamos demais no banho, eram exageradas. E daí se o mundo ficaria sem água em menos de cem anos por causa de banhos como os nossos? Nenhum de nós estaria vivo para testemunhar o dilúvio às avessas.
Hoje, “ não me importo”, “tô nem aí”, “ e eu com isso?” têm a mesma função do velho “e o kiku?” da minha juventude, contração do mineirês “e o qui ku tem a ver c’isso?”. São palavras de ordem do descaso, característico de uma fase na vida de todos nós, usualmente no início da adolescência, em que quase nada importa, a não ser o próprio umbigo, os amigos, o prazer e, naturalmente, o espelho. É uma espécie de grito de independência, uma couraça contra o inimigo potencial – os desafios do mundo. O adolescente crê que, preservada a sua identidade ( leia-se os amigos) e a auto-imagem ( espelho, espelho meu...), nada de mau pode atingi-lo. A desgraça só acontece com os outros.
À medida que o tempo passa, conscientizamo-nos que tudo que atinge alguém, afeta a todos. Às vezes, o entendimento vem da observação. Outras vezes, pegamos no tranco, depois de muita paulada. Como parte de uma enorme engrenagem de interconexões, cedo ou tarde, pagamos o preço por nossas atitudes. O inferno ou o paraíso provocados por nós mesmos é um motto em comum para agnósticos, ateus e religiosos.
Os Estados Unidos me evocaram, ao fim da viagem, uma linda adolescente mimada. Ísis, em menos de um ano, terá sobrevivido a esta sombria fase, como anteriomente o fizeram suas irmãs, tia, mãe, avó... Quanto tempo os americanos precisarão para fazer o mesmo?
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