Parto na Roça
Encharcado de chuva ele chegou. Desceu de seu cavalinho piquira e com o chapéu de palha sob o braço direito bateu palmas na porta do médico. Era um “portador”. Na linguagem atropelada e própria dos ermos disse ao que veio: - “Meu patrão pede pru dotô atendê um chamado urgente de parto garrado”.
Era uma noite de tempestade. Lá fora, o vento, a chuva, relâmpagos e trovões faziam um barulho infernal. Estávamos nos grotões, década de 40. Época de revoluções, dos coronéis de patente, dos capangas, dos assassinatos políticos, medicina atrasada, pobreza generalizada, estradas esburacadas, porteiras, atoleiros incontáveis e ausência de hospitais ou maternidades.
Para chegar até a choupana de pau-a-pique coberta de sapé ele atravessou uma plantação de arroz e subiu pequena trilha lamacenta e escorregadia orientado por uma lanterna. Caminhava com extremo cuidado – há pouco tempo tivera uma queda de cavalo mal arriado. Na frente ia o “portador” carregando a maleta e a caixa de ferramentas. O chamado era para sua esposa. A porta do casebre era minúscula e a cabeça esbarrava na travessa superior se não se abaixasse. O fordinho ficara a cerca de trezentos metros. O barraco tremia com as lufadas do vento. Passava das 23 horas! As chamas bruxuleantes de duas lamparinas iluminavam um ambiente extremamente pobre, projetando nas paredes e cantos figuras fantasmagóricas. O cheiro do querosene era sufocante.
No fundo do pequeno cômodo num catre miserável com tijolos escorando um de seus lados e enrolada em trapos estava deitada uma jovem mulher em intenso sofrimento. De vez em quando se contorcia gemendo para dar à luz seu primeiro filho. O marido com o chapéu de palha abanava a esposa tentando acalmá-la. Ao lado estava a parteira, senhora idosa e assustada observando humildemente o trabalho do médico. Num canto um fogão de lenha fervia a água para esterilizar o material que seria utilizado. A fumaça inundava o ambiente e ardia nos olhos. Aquele quadro de horrores já durava 48 horas. Quando viu que não resolvia a parteira mandou chamar o médico. Depois de muito trabalho aplicara o fórceps e ajoelhado no chão com muito esforço extraíra a criança.
Lá fora a chuva continuava torrencial. Ele estava ali há duas horas tentando resolver aquele parto. Perdera a noção do tempo. A criança já nascera, mas não chorava! Os minutos foram passando e o ambiente cada vez mais tenso. Tentava a reanimação com coramina, respiração artificial, mergulhava o pequeno corpo alternadamente em água morna e fria. Não havia oxigênio, não havia máscara, não havia anestesia, não havia incubadora. Nada! Só ele, Deus e sua ciência. Mas ele não desanimava. Meia hora já havia passado e a criança ainda estava pálida e fria.
De repente, misericórdia! - uma respiração, uma pausa, outra respiração seguida de um pequeno gemido. Os membros ainda estavam flácidos, mas já havia uma respiração incipiente e contínua. Isto o animara. Redobrou as massagens e a criança enrolada numa toalha e água morna já começara a respirar sem auxílio. Lentamente aquele corpinho ia adquirindo vitalidade. No início pequenos movimentos e depois um choro cada vez mais forte enchia de emoção aquele pobre ambiente: as mãos de Deus renovando a vida! Salvara mãe e filha. Três semanas após receberia uma leitoa como agradecimento.
Esse foi apenas um dos aspectos de sua intensa vida profissional. Foram 35 anos de atoleiros e lombos de burros, chuvas, ventos e cirurgias de emergência sob luz de lamparinas. Era um homem simples, filho de imigrantes italianos, estudioso, perseverante, otimista e obstinado. Semeou saúde e educação - fundou uma Maternidade e um Colégio.
De tudo que fez na vida, o principal foi o legado de honestidade, retidão e exemplo profissional que deixou. Jamais será esquecido. Depois de quarenta e três anos continuamos a chorar sua morte. Nosso luto será eterno!
Deus te abençoe, meu pai.