Sou um insolvente civil
Descobri que sou um insolvente civil. Esse insolvente vem a ser a pessoa física que tem dívidas superiores ao valor de seus bens. Como não tenho nenhum patrimônio, o “pendura” no bar de Zé, em Jaguaribe, já me coloca nessa situação. Da minha massa falida consta um violão quebrado, que coloquei pra consertar e não tive grana para resgatar no Lutier, um computador sem valor monetário, alguns livros, uma vitrola onde rodo meus LPs, dois gatos e dois cachorros. O carro velho pertence à financeira.
Como insolvente civil, não tenho capacidade para exercer certos direitos e obrigações. Não posso, por exemplo, propor ação na instância judiciária. Nessa triste condição de meio cidadão, se eu comprar uma mercadoria com defeito, não posso me queixar no juizado de pequenas causas. Porque sou um insolvente civil.
O que diabo faz um insolvente civil no meio da sociedade de consumo? Recentemente, a poderosa General Motors faliu, recebendo prontamente a ajuda do governo americano. Mas para o insolvente civil Fabinho nada! Não tem nenhum Fundo Monetário, nenhuma lei que proteja o cidadão insolvente civil. Quebrou, te vira! Sou maior de 18 anos, capaz, mas não posso ser parte na sociedade de consumo, no mundo dos negócios.
E se eu fosse um insolvente militar, em vez de civil? Com a arma na mão, a coisa é outra! Não existe a figura do insolvente militar, só civil. Mesmo porque o Governo, que sabe de suas obrigações para com quem tem o trabuco, concede aumentos salariais maiores para os fardados e até uma justiça especial eles têm à disposição.
Já para os paisanos só restam as condições de réu, contribuinte, eleitor forçado, devedor e insolvente civil. Quem não pode pagar o que deve fica à margem da sociedade. A insolvência não tem caráter militar nem eclesiástico. Alguém já ouviu falar de uma igreja falida? O cara vende ilusões, não paga impostos e pode sonegar à vontade, até eu que sou um panaca nos negócios prosperaria.
Na verdade, quem me quebrou foi o próprio Governo. Quando entrei na “feliz vida de aposentado”, ganhava oito salários mínimos. Hoje sobrevivo com menos de três, vítima que sou do assalto oficial que é o achatamento salarial neste país de muro baixo. Mal remunerado e com vida sofrida, o aposentado vira insolvente civil.
Vou morrer com 97 anos, sete meses e sete dias, quando o ciclo se completa, segundo a numerologia praticada pelos ciganos das Astúrias. De uma certeza tenho: morrerei insolvente civil, por não aprender em tão longa vida os mistérios da prudência financeira. Igual a canja de galinha, prudência não faz mal a ninguém. A sabedoria dos antigos romanos já dizia: “nem a relva macia acaricia os passos do imprudente”.