QUE SAUDADE DE VOCÊ  INÉS!

               Amiga é coisa boa demais. Entendem muito o que os outros não vêem.
               Estou sentindo falta do entendimento da Inês quando leu "A MULHER DE EL CID"  e do comentário dela. Há umas leitoras ou amigas que fazem cada comentário de tanta compreensão e sabedoria! Eu gostaria que algumas novas amigas e outras tantas novas leitoras lessem essa crônica que fiz há tempos passados e, por tal motivo, vou republicar esse texto; para uma releitura depois de tanta coisa que já falei.


               A MULHER DE EL CID
 
          Quando o vejo disparado pelo campo aberto, morto, mostrando a sua aparente grandeza, eu começo a acordar, a despertar dum sono cultural, familiar e social.
         Eu.
          Porque estive com este homem e vivi a sua vida que não a minha? Por que trajo estas roupas que não me dizem nada de mim mesma? Estas vestes longas e medievais? Por que tomei conta deste castelo e destas terras e posses? Por que me senti responsável por tudo isso que não é meu? E que nem nada disso me interessa? Por que cuidei da criadagem e da ordem das coisas de um tempo que não é o meu e eu nada tenho com isso?
         Por que a preocupação cotidiana de manter a prataria brilhando e fazendo banquetes fenomenais com os melhores vinhos e a melhor comida aos comensais?
         Por que ninguém notou a minha trabalheira e a delicadeza de todos os sabores requintados que ofereci e fiz? Por que me ignoraram como se eu fosse um ato de magia paralela? Por que isso nunca me importou?
         Porque todos só viram em mim o que queriam ver em suas próprias limitações e necessidades que assim fosse? Ignorada, usada como um apêndice sem boca e sem fala, sem desejo e sonhos, sem inteligência e sem conhecimento de toda uma biblioteca secular. Desenvolvida na sensibilidade e na percepção da vida, nos valores humanos, naturais e éticos, desenvolvida na arte até a completa liberdade de ser e viver. Livre para sonhar. E livre para não precisar mais dos sonhos, das realizações outrora pretendidas. Livre e desprendida de todos e de tudo.
 
         Abro os portões deste castelo e deste tempo, escancaro as portas para dar passagem ao meu corpo e minha mente que é tão grande bagagem que a largura é pouca para uma saída mais plena e livre de qualquer outra coisa que não eu mesma. Arranco as roupagens que me cobrem e que pertencem a este tempo e espaço às minhas costas. Deixo o vento entrar pelos portões passando célere por minhas pernas nuas e volteando os meus cabelos e, após, invadindo cada rincão de coisa e de lugar que fica para trás e dentro deste mundo que não existe e nem significa.
         Saio.
         Nua e desprendida. Nada levo. Nada deixo.
Eu quero a poeira do deserto. Eu quero o sol nascendo  no horizonte das dunas. Pode ser lindo e alimento para a alma. É desafio enfrentar as areias escaldantes do meio dia. Meus pés pisarão a areia escorregadia entre os dedos, prazerosamente. Se cansar, deito um pouco. Se a pele queimar, cavo com as mãos um buraco e me cubro com a areia até o cair da noite, que aguardarei com um desejo novo. Desejo da beleza de um céu estrelado até onde a vista alcançar.  Encontrarei passantes, homens e mulheres, bichos, oásis, mesmo que demore, pois este mundo é muito pequeno. Cada dia é um dia novo. O novo é bem-vindo e bom.
         A liberdade. O sabor do novo e do desconhecido. Uma mudança boa, afinal.
 
         Por que uma indefinida tristeza ainda?