CARRAPICHO

Cada cidade por certo teve, ou ainda tem, os seus personagens de ruas, os andarilhos. Campinas/Goiânia, teve os seus nas figuras mais conhecidas de Maria Macaca, Maria da Arara, Carrapicho e outros. Eram pessoas desvalidas, vivendo à mercê da caridade popular, enquanto sofriam os reveses da vida expiando suas deficiências físicas e vivendo perseguições e maldades que espíritos não esclarecidos lhes afligiam. A impressão que eu guardo deles até hoje é que não paravam. Estavam sempre caminhando, caminhando...

CARRAPICHO

Lembro-me bem de seus olhos: cinzentos claros, pálpebras inferiores desmesuradamente caídas e os globos oculares levemente inclinados para cima; também dos cabelos levemente encanecidos e lisos. Eram os detalhes que mais me impressionavam nele e não sei explicar a fixação.

Sua estatura era pequena. Andava meio arrastando as pernas, talvez prejudicado pela mão que ficava constantemente segurando a calça larga na cintura, o que, inevitavelmente, grudava-lhe o braço junto ao corpo comprometendo sua locomoção. Raramente via-o de camisas. Julgava-o com uns cinquenta anos pelas múltiplas rugas do rosto, dos braços e da barriga sempre à mostra. Cinquenta anos de flagelos, presumia.

Seu aparecimento na rua Maranhão quase sempre era precedido pelo burburinho que as crianças aprontavam ao seu redor. Dentro da casa eu corria para a porta que dava para a rua onde Carrapicho passava perseguido pelo bando de meninos e adultos desocupados.

-- Coitado! Apiedava-me.

Nunca ouvi do desditoso homem alguma palavra articulada; suas lamúrias de protestos sempre se expressavam pelos resmungos e pela carranca nervosa que fazia para livrar-se dos incômodos moleques.

Sua aparência, sua calça larga, era de uma sujeira só; raramente, nos vários anos em que Carrapicho percorreu as ruas de Campinas, o vi limpo, cuidado. Nunca também soube de seus familiares, se os tinha ou não. Tinha Deus consigo em sua desventura!

Uma passagem que me marcou muito foi numa fria tarde de junho, véspera das provas no Grupo Escolar Henrique Silva: eu estava chegando pela altura do antigo Bar Caçula quando, de repente, notei distante uma multidão surgindo da Jaraguá e adentrando a Mato Grosso. Alguns curiosos ainda chegavam correndo para engrossar a turba. No meio do arruído, o fragilizado Carrapicho! Grande parte do populacho pulava e levantava os braços como prestes a atirar alguma coisa sobre o pobre diabo; ele grunhia ferozmente tentando safar-se do cerco humano, arrastando-se como podia pela rua esburacada.

---”Doido!... Doido!...” Gritavam inclementes, enquanto lhe atiravam inofensivos objetos.

Com o único braço livre, Carrapicho tentava defender-se, mas a chuva de impropérios aumentava assim como a de coisas diversas ao cair-lhe sobre a cabeça. Em dado momento, no afã de defender-se melhor, solta a calça que desce aos pés! O infeliz tropeça na vestimenta e cai!... O povo delira! Num esforço sobre-humano livra-se da calça, pondo-se de pé! Continuava seu calvário! Alguns, agora indignados pela nudez do pobre homem, ousavam chegar mais perto, cuspindo-lhe o rosto. A muito custo levantou suplicante os olhos cinzentos, parecendo nada compreender daquelas agressões gratuitas. Inesperadamente... Tumpf!... Uma pedra maior acerta-lhe a testa, jogando-o ao chão. O rosto, agora ensangüentado, quedou-se na poeira e o corpo não deu mais sinal de reagir. Alguém se aproximou --- “seo” João da Da. Geralda, salvo engano --- tentando ampará-lo à custa do próprio corpo, conseguindo levantá-lo mas não sustê-lo em pé, por muito tempo; de forma que o miserável cambaleou novamente sobre as cansadas pernas e desmontou ao chão. Pude ver, então, bem de perto sua face: uma ferida larga jorrava sangue vivo por cima de um olho e a poeira, grudada à baba da boca, transfigurava-lhe totalmente as feições!... Gemia baixinho agonizando a desdita.

Ao tempo de poucos minutos, porém, alguns de seus algozes conseguiram levantá-lo, obrigando-o a assumir o seu triste destino. Nietzsche não afirmara que Deus havia morrido por ter piedade dos homens? Ai de mim, pobre e fraco mortal; afastei-me devagar, pensativo, tentando me desvencilhar daquelas cenas, enquanto prosseguiam. Por um momento desvaneceu-me o pensamento, como se estivesse retrocedendo no tempo... quase dois mil anos, por certo. Agora estava a ver, não um simples e infortunado homem, mas sim, algo que transcendia a grandeza e que ninguém tinha olhos para ver, ainda... Um Carrapicho de luz!

Ao longe, bem depois da casa de Da. Ester, imediações da casa do Tatão, divisava seus passos trôpegos e sofredores empurrados pelo furor da turba delirante, em meio ao vento que soprava frio e triste.

Meu pobre homem: hoje, se pudesse, lavar-lhe-ia os pés sujos e feridos com mirra e lavandas refinadas, enxugando-os com os cabelos que me restam!