NOITE VAZIA





O restaurante lotado parecia um excelente sinal de boa comida e clientes fiéis. Não estranhei as vozes exaltadas em um ambiente descontraído.


Estávamos em três casais. Cada um de nós havia nascido em uma cidade diferente e era interessante perceber o mesmo idioma nos aproximando enquanto nossos sotaques nos diferenciava.


No entanto, não é apenas idioma ou a entonação que damos às palavras que distingue o ser humano.


Há um universo de valores na alma. Somos mosaicos que se formam numa espécie de reação química com a própria vida.


Alguns de nós, ainda que a jornada seja turbulenta, preservam a ternura, são então, mais doces (e dóceis).


Outros não conseguem transitar na doçura, seu sabor é ácido.


E vários não resistem e sucumbem à amargura. Estes deixam a tristeza ganhar todas. Não tem jeito.


Há ainda os que ardem mais que pimenta em ferida aberta ou se inspiram nas águas do Mar Morto e salgam toda a existência.


Em tempo: claro que não somos tipos classificáveis como ingredientes de uma "receita de ser humano". Temos todos os "sabores na alma". Somos tudo.


Entretanto podemos exibir traços mais fortes de um ou outro sabor. Enfim, deve ser o que chamamos de "temperamentos". (Não lembram temperos?).


Voltando ao restaurante... espero que você ainda se recorde que o início desta crônica estava ali.

 
Após uma (longa) espera, fomos atendidos por um senhor avesso a qualquer tipo de contato amigável. E o mais inusitado: não era obra do acaso. Todos os funcionários do local tinham o mesmo traço em comum: a deselegância com os clientes.


Em um primeiro momento, pensei que o dono do lugar devia ser humorista. Imaginei-o proprietário de uma rede de hotéis: "Refúgio do (Mau) Humor" e o seguinte diálogo entre um desavisado hóspede e ele:


- Bom dia!


- Onde?


- O que é isso, senhor?


- O "Refúgio do (Mau) Humor" só responde uma pergunta por semana! Sua cota estourou e o café da manhã foi servido até cinco minutos atrás! Será cobrada uma multa por sua incompetência ao acordar a esta hora e perder a única refeição que servimos aqui!


- O senhor poderia...


- Não poderia! Sua conta já está fechada e a multa incluída. Pague agora. E à vista!


Essa minha imaginação é terrível, mas de volta à mesa e ao mau humor no ar.


Tentei sorrir, sem o menor sucesso, para o senhor que me entregava o cardápio, mas não mudei minha forma de ser. Permaneci educada até que, entre alguns "por favor" e "muito obrigada", um dos meus amigos pergunta:


- Ainda não entendeu, Dolce?


- O quê?


- Sua natureza polida é inútil. Não adianta gentileza, nem educação.


Perplexa, meu tom de voz soava extremamente tolo ao indagar:


- Por que não?


Não é à toa que meu amigo escolheu a carreira de cirurgião:


- Porque aqui sua educação é sinal de fraqueza!


Fechei o cardápio indigesto sem me lembrar o que havia pedido. 


As vozes à mesa ficaram mais distantes. Senti frio e uma pontada de tristeza em uma noite vazia.











(*) Imagem: Google

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Dolce Vita
Enviado por Dolce Vita em 09/06/2009
Reeditado em 24/06/2011
Código do texto: T1639414
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