CORTINA DE FUMAÇA
Sabe a felicidade transmitida pelo olhar? Sabe aquela pessoa que dá gosto de ver, antes mesmo dela se manifestar com palavras? Sabe a alegria irradiada em um ambiente qualquer que haja pessoas em volta de quem quer dividi-la? Pois é, ela existiu para mim um dia. O nome nem sei, nem importava. E seu apelido era Neném do Muro. Ele montava muros pré fabricados de concreto. Chegava no quintal ou jardim, cavava, fincava as vigas e encaixava as placas umas sobre as outras. Depois fazia uma massinha, rebocava os vãos e pronto. Pintura e decorações ficavam a gosto do dono da obra. No mais, gastava o tempo que sobrava com uma conversa calma e bastante sorrisos que contagiavam.
Neném tinha um caminhão enorme. Não precisava tanto. Uma camionete pequena seria suficiente para caber todos os instrumentos de trabalho e matéria prima. Acho que o caminhão enorme era para caber também o mesmo tanto de felicidade que cabia nele. Parecia que seu coração ficava disparando raios de felicidade que iam dar direto nos olhos. Era muito só, não consta que tivesse família. Afeiçoou-se à minha de tal forma que a imagem que guardo é de um irmão mais velho que aparecia sempre. E ainda por cima levava muita gente para passear em seu caminhão. Piqueniques nas beiras de rios, nas cachoeiras, nas fazendas da região. Enchia o caminhão de gente, que ficava alegre feito ele.
Neném namorava Gracinha, fazia treze anos. Um amor sem medida, mas eu acho que era a razão maior da alegria dele com a vida. Gracinha era o próprio nome incorporado numa silhueta miúda, um rosto angelical, uma voz de quase sussuro. Se há imagem para representar o casal perfeito, feitos um para o outro, era aquele.
Gracinha fumava, fumava muito. Uns três maços por dia. Neném travava uma fraterna luta com ela contra o vício. Teve uma época que até tentou fumar, já quase desistindo da empreitada, mas era alérigo e não gostava do cheiro. Na roupa, no cabelo, na boca. Pedia conselhos à minha mãe, àquela altura já sua confidente do amor que estava se tornando nublado pela cortina de fumaça. Ela sentia-se meio impotente. O meu pai também fumava. Não tanto, mas o suficiente para cochilar e acordar toda a casa com cheiro de queimado. Foram uns três ou quatro colchões. - “fala para ela se lavar antes do namoro, trocar de roupa, escovar bem os dentes, isso ajuda.
Nenem foi levando, seguindo as dicas, conversando. Gracinha prometia diminuir o ritmo das baforadas. Nada. O amor não estava suportando. No décimo quarto ano, aquele amor tremeu, amarelou o sorriso do Neném. A ponto de ele adoecer. Agora, eu já não sabia se de alergia, de dor que não tem nome ou das duas coisas. Sei é que um dia disse que precisava tomar uma atitude dura e tomou. E deu-lhe um ultimato. Ou era ele ou o cigarro dela. Nunca iria pensar que ela amasse mais o cigarro. E ela escolheu o vício com a solidão junto.
Neném desapareceu de circulação. Gracinha também. Tenho vontade de saber até hoje o final dessa história. Nunca tive mais notícias dos dois. Se Gracinha arranjou um edema, se Neném morreu de amor ou se arranjou outro alguém. Quem sabe se não mudou ela de idéia e se casaram? Iam ser felizes, sim. Tinham, à exceção do mau cheiro de nicotina, tudo para ser felizes. Ou quem sabe Neném não arranjou outra moça para repartir um pouco de que sobrou da sua alegria? Agora já não devia possuir tanta. Quem sabe?