Vendedor de carros
O caso se deu em um dos estacionamentos de carros usados. Carros bem usados, diga-se de passagem. Tão usados que a avó, sem entender nada nem de carros, nem de motocicletas, nem de bicicletas advertiu o neto que trabalhava diuturnamente, economizava todos os dias e sonhava em desfilar no veículo no sábado à noite. Suspirava pensando nos olhares curiosos de amigos, conhecidos, desconhecidos e transeuntes sobre o condutor, a acompanhante e o carro.
Ignorando os conselhos da avó, optou por uma revendedora próxima de um instituto de línguas. Como a ansiedade o sufocasse e o vendedor o pressionasse, ameaçando negociar o produto com o primeiro interessado, pagou à vista.
- Mas você comprou um carro de noite? Perguntava o avô, olhos esbugalhados, voz contrariada. Não se pode comprar carro à noite.
Irritado com a intromissão, fechou-se no quarto. De quem era o carro? Quem pagara por ele? Quem iria mantê-lo? Comprava carro de noite, de manhã, de tarde e, se abusasse, de madrugada. Qual o problema?
O problema surgiu assim que a claridade que antecede o sol invadiu a pequena garagem, mostrando a pintura riscada na porta do lado do motorista, o vidro traseiro levemente trincado, a falta de pneu sobressalente, de macaco, de limpador de pára-brisas, os faróis da frente que não acendiam, os de trás que nem existiam, o teto queimado e o estofado do banco de trás rasgado.
O avô o flagrou reclamando sozinho. Os olhos de ambos se cruzaram.
Pensou em devolver o automóvel, mas a devolução imediata representaria fracasso e perda de respeito. O avô, a avó, a namorada, os amigos e alguns vizinhos curiosos comentariam exaustivamente a situação. Resgatou o resto do dinheiro da poupança e reformou as partes complicadas, deixando a pintura para outra ocasião.
Como trabalhasse na cidade vizinha, viajaria duas vezes por semana, alternando oferecimentos e recebimentos de carona. Viajaria se o radiador não estourasse na primeira noite de sábado que saíra com a namorada. O valor de guincho, radiador novo, troca de algumas peças e conserto do capô compraria duas bicicletas ou possibilitaria três dias em Florianópolis com acompanhante.
Amanheceu terça-feira à porta do estacionamento. Experiente nas ciências da ladroagem e nas práticas do ludíbrio, o vendedor desdenhou dos argumentos alegando descaradamente que, se não funcionava, o cliente tinha provocado danos ao automóvel. Evidenciou seu descontentamento e falou que o carro vendido estava totalmente sucateado.
- Se o carro está ruim, não posso fazer nada. O que posso fazer é comprá-lo de volta.
Inicialmente contente com a oferta, a fúria subiu pelas têmporas ao ser informado do valor: oito mil reais.
- Mas eu comprei por quinze mil.
- Comprar, comprou. Só que você o danificou e vou precisar da diferença para consertá-lo. É pegar ou largar!
A voz paciente e o temperamento calmo fizeram o vendedor acreditar que ele caminhava para ir embora fracassado. Depois de remexer no porta-malas, o cliente, espingarda doze engatilhada:
- Você sabe correr?
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 4 de junho de 2009.