É de Ouro! (humor - causo)

Morávamos no Núcleo Bandeirante, uma das cidades satélites de Brasília.

Era nosso primeiro apartamento, comprado na planta, financiado. Ainda durante as obras, negociamos a troca dos materiais de acabamento e encomendamos armários sob medida para todos os cômodos, persianas para as janelas, bancadas de granitos para as pias do banheiro e da cozinha.

Ou seja, quando nos mudamos, mudamos para um apartamentinho novo, lindo, decorado no melhor padrão Casa Cláudia de classe-média-média. Todo mundo que nos visitava elogiava o ambiente planejado, criativo e aconchegante.

E eu, modesta e honesta, assumia, apontando para o marido:

- O bom gosto é todo dele!

E continuava, porque, invejosa, não ia deixar assim, barato:

- Eu só faço os cheques.

Mentira, claro. Isto é: o colecionador de revistas de decoração era mesmo ele, dono de um gosto excelente (afinal, casou-se comigo) e um incrível senso prático. Portanto, a arte era mesmo, muito mais dele do que minha. A mentira estava mais na complementação: os muitos cheques que penamos para pagar eram da conta conjunta com a qual contribuíamos quase meio a meio, o meu "meio" sempre um pouco menor.

Logo percebemos que aquele pequeno paraíso de beleza plástica, estava mais para um irritante inferninho. Morávamos numa avenida comercial, um quebra-molas bem em frente à nossa janela fazia-nos acordar com as frenagens dos carros e ônibus. Do outro lado da rua havia uma igreja, cujo tamanho e potência das caixas de som em que executavam suas músicas e orações nos deu a certeza de que eles acreditam que Deus seja mouco. Assim como os vizinhos. No natal, acordávamos e íamos dormir ouvindo ofertas e músicas natalinas, tocadas nos alto-falantes distribuídos a cada poste. Sabe como é, morar dentro de um shopping? As ligações telefônicas precisavam ser interrompidas sempre que um avião aproximava-se do “próximo-demais” Aeroporto Internacional de Brasília, voando baixo e ruidosamente sobre nossas cabeças.

Havia ainda o trânsito caótico até os nossos trabalhos e a vizinhança. Além dos comerciantes, com quem mantinhamos um bom relacionamento havia várias famílias morando por ali. Muitas com crianças. Dá para imaginar que aquele ambiente de asfalto e trânsito não fosse muito divertido para os garotos. Inevitáveis as estripulias, como tocar os interfones alheios e sair correndo, ou escalar os automóveis estacionados: subiam pelo pára-choque traseiro, passando pelo porta-malas e teto e escorregavam pelo vidro e capô até descerem pelo pára-choque dianteiro.

Numa ocasião, chegávamos da rua no carro do marido quando vimos uns garotos apoiando-se nos faróis de milha do meu velho Escort: apontando as luzes para o chão, os meninos de uns cinco ou seis anos cada um, colocavam as duas mãozinhas sobre eles e tiravam os pés do chão, todo o peso do corpo sobre os pobres acessórios.

Falei, até educadinha:

- Faz assim não, filhinho... Vai estragar o carro da titia.

A mãe deles que estava sentada por ali, conversando com uma outra mulher levantou-se e chamou os garotos.

- Vem, filho. Não mexe aí, não. É de ouro!

Ah! Pra quê? Meu marido deu-lhe uma esculachada que até eu que detesto um barraco gostei de ver.

Adiantou nada, claro. De vez em quando ainda víamos os guris aprontando, sob o olhar complacente daquela mãe. Ela sim. É de ouro.