Mea culpa
A barriga está enorme, as pernas incham, você suspira e anseia pelo nascimento. O bebê nasce. E chora dia e noite. Zumbi, você pensa que talvez se não lhe amamentasse tão amiúde, ele se acostumaria ao jejum e não teria força para esgoelar-se. Você só quer escapar dali. Até saudades do chefe mandão você sente... Na volta ao trabalho, a nenê berra, não alimenta bem. Você se culpa : se não a paparicasse tanto, talvez ela não sentisse a sua falta. Você a acompanha à distância : quem vê os primeiros passos, escuta a primeira palavra é a babá. Perto dos dois anos, você a ouve chamar a babá de mamãe e lamenta a desdita de trabalhar. Se ao menos você pudesse estar com ela mais tempo...
Aos treze, sua mocinha é reprovada e você perde parte da ilusão de que ela é o Ser Perfeito na face da Terra. Pura questão genética : se você tivesse casado com o Eugênio, o nerd que emudecia na sua presença... Você escolheu Marcelo, o “Belo” : bonito, louco por um rabo de saia, inteligência limitada. Aos quatorze, a menina que você imaginou top model da Ford, alimentada a geléia real, faz o tipo hippie : rosto lavado e sem pintura, saião, rasteirinha, cabelo despenteado. Vá se queixar ao bispo : quem falou sobre Woodstock e levou o dvd do musical Hair para casa?! Na festa de quinze anos, ela dança a valsa de pé no chão, sozinha no salão, ao som de “Lucy in the sky with diamonds”. Quem apresentou os Beatles para ela?!
Um dia ela comunica que vai estudar Comunicação Social. E você pensa em todo o danoninho – cálcio, ferro, vitaminas – da infância. Desperdiçado, assim como o seu sonho de ter a filha presidente de multinacional. Foi você quem estimulou a criatividade, financiou as aulas de teatro e dança! E ela apresenta, de uma só vez, o namorado guitarrista de banda, o rabo de cavalo dele e a tatuagem no seio dela. Quem falou a ela sobre biodiversidade, equidade social e liberdade de expressão?! Aos vinte e dois, você tem um piripaque quando ela quer dormir com o namorado em casa : o estímulo para reunir os amigos na sua casa para escapar da violência urbana partiu de você. Você repete o mantra “nunca fiz apologia a drogas ou erva”... Opa, será que a erva cidreira do chazinho calmante ou a droga do Marcelo, sempre ausente, contam?
Ela faz pós graduação no exterior, a casa fica vazia, você se desmancha de saudades. Resignada, lembra que as aulas de inglês, espanhol e alemão foram úteis, enfim. Aos trinta, ela volta e se instala na sua casa – eis o resultado de tantos anos de mordomias dignas de hotel cinco estrelas. Você dependura Santo Antônio de cabeça para baixo até ela arranjar um marido.
Aí ela casa e fica dias sem ligar, sempre ocupada. E você se recrimina : quem mandou fazer dela uma grande amiga? Bem que te avisaram : mãe é mãe, amiga é amiga. Você anseia pelos netos e os netos chegam. Todo fim de semana. O fim de semana todo. Sua casa é um pedaço de Sarajevo e você se arrepende de ter tratado bem os pirralhos da primeira vez. Aí ela se separa e volta para sua casa de mala, cuia e dois curumins. Só até tudo se acertar. Sua casa agora é uma oca, você perdeu o posto de cacique. Você apela para Tupã.
Então você repassa toda a sua vida para entender onde foi que errou. O erro foi do destino que não te fez mãe judia. Aquela sim, teve muita sorte : um filho admirado por todos, pleno de virtudes... um pouco rebelde, é certo, mas isso era problema do Pai, com quem voltou a morar aos trinta e três anos. Daquele sim, dava gosto ser mãe... Filho bom foi Jesus Cristo!
Você considera a possibilidade de fugir de casa para morar com os índios numa tribo amazônica.
( publicado originalmente no Recanto das Letras em 22/11/07)