O POBRE E O RICO

Não vou dissertar sobre a sociedade e economia mundial. Este é apenas o título de uma cantiga de roda, que me veio à mente, num momento de lembranças.

Onde nasci o primeiro vizinho morava há um quilômetro de distância. Tinham seis filhos. Na minha casa era só eu. Filha única? Que nada, a ‘rapa do tacho’. Os outros sete já eram crescidos. Sentia-me muito só, naquele fim de mundo, razão por que vivia misturada com as filhas do vizinho. Moravam numa casa de madeira muito simples. Na frente não tinha calçada nem grama, era chão batido e as meninas varriam com um feixe de capoeira, a tal vassoura de terreiro. Quando as primas delas vinham, a turma aumentava e podíamos fazer minha brincadeira favorita: O Pobre e o Rico. Formávamos duas fileiras. Ficava uma fileira de ‘pobres’ distante uns dez passos da fileira das ‘ricas’. A fileira ‘pobre’ avançava e cantava: ‘Eu sou pobre, pobre, pobre de marré, marré, marré. Eu sou pobre, pobre, pobre de marré, de si’. Depois era a vez de a fileira rica avançar e cantar o mesmo verso, trocando apenas a palavra ‘pobre’ por ‘rico’, emendando o seguinte verso: “Quero uma de suas filhas, De marré, marré, marré, Quero uma de suas filhas, De marré, de si”. As ‘pobres’ respondiam: “Escolhei a que quiser de marre...”. A ‘rica’ cantava: “Eu quero a Fulanazinha de marre...”. As ‘pobres’ indagavam: “Que ofício vai dar a ela? De marre...” A fileira ‘rica’ respondia em verso também, oferecendo o ‘ofício’. As ‘pobres’ aceitavam ou renegavam o proposto. Toda vez que um ofício era aceito, uma das filhas pobres passava para o lado das ricas. A música se repetia até que todas do lado pobre passassem para o lado rico. Ao final da música, todas cantavam juntas: “Eu, de pobre fiquei rica, De marre... Eu, de pobre fiquei rica, De marré, de si”. Eu sempre renegava todos os ofícios. Só aceitava o ‘ofício de princesa’. As meninas ‘ricas’ sabiam desta minha aspiração e propositadamente me ofereciam ofícios de costureira, lavadeira, bordadeira. Eu fincava pé e a brincadeira só acabava quando todas as meninas que já estavam no lado rico se rendiam ao meu capricho e me ofereciam o ‘alto escalão’ almejado. Não lembro se alguma vez mais na vida, tive algum desejo realizado de forma tão instantânea.

Na destreza lúdica das crianças daquela época, esta possibilidade de ascensão social se concretizava entre um verso e outro. Inobstante as divergências por causa dos ‘ofícios’, as duas fileiras de meninas viravam uma roda só e de mãos dadas, na mesma voz, no mesmo tom e animação, proclamavam a unidade social.