WANDECA E O POETA

Era um domingo de inverno em São Paulo, findava o ano de 1969. Tarde gelada e úmida. Estávamos todos no campinho de futebol, eu, o japonês Insamu, Mané e o Nenê. Procurávamos tampinhas de refrigerantes para retirar a cortiça na esperança de encontrar vale prêmios. O pai de Nenê era dono de bar e já ganhara um rádio de pilha. Dona Loló teve mais sorte, tirou um jogo de jantar de faiança, com desenhos de patos selvagens e cabanas com lareiras, como se vê, motivos bem brasileiros. A maioria de nós apenas juntava 30 tampinhas para ganhar um chaveirinho mixuruca com miniatura de garrafa de coca-cola. Com as tampinhas sem brindes, fazíamos botons, inserindo a cortiça pelo lado de dentro da camisa e a tampinha no lado de fora. Pena que o arranjo só durava o tempo de uma corrida atrás de uma pipa ou um pulo no galho de uma árvore.

Por volta das três da tarde, a turma já havia almoçado - macarrão com frango, invariavelmente o cardápio aos domingos. Naquele dia meu pai saíra cedo para ir à missa e trazer a mistura para o almoço mas chegou tarde e comemos arroz com feijão e berinjelas à milanesa. Para dizer que eu tinha comido macarrão com polpetone, sujei minha boca com pedaço de tomate, só para não fazer feio frente á turma.

Rodeando as calçadas íamos juntando na camiseta dobrada, a colheita rara das pequenas chapas metálicas, como que guardando troféus valiosos.

Estando distraído, senti um par de mãos quentinhas cobrindo-me os olhos.

- Adivinha quem é? – Sussurrou em meu ouvido a menina mais cobiçada do bairro, Verinha.

Meu coração acelerou, as tampinhas escoaram das mãos e respondi a primeira coisa que me veio à cabeça: - É um anjo que caiu do céu!

Foi então que me descobri poeta, um tanto canhestro, mas poeta, aos nove anos de idade. E como surtiu efeito a minha resposta... Verinha virou-se, olhou bem nos meus olhos, tirou do bolso do casaco um lencinho rosa e limpou cuidadosamente a marca do “molho de macarrão” que o menino descuidado não percebera.

Os amigos logo se achegaram e cortaram o meu barato, caçoando e fazendo brincadeiras grosseiras. Verinha então desconversou e disse que viera nos avisar que aquela tarde passaria no canal 4 o último programa da Jovem Guarda, apresentado por Roberto Carlos, Erasmo e Wanderléia. Era a despedida e estávamos convidados para assistir na casa dela. Dizem que estariam todos os cantores e cantoras de sucesso do momento.

- Se apressem que começa às quatro horas! Disse Verinha, imitando uma canção.

Nesta época ainda não tínhamos televisor em casa, só um ou outro vizinho mais “bem de vida”, candidatos à “alta sociedade” como dizia meu tio Carmelo, possuiam aparelhos de tv em branco e preto, e claro.

Corri feito um zagueiro até minha casa, driblando vasos e muretas. Troquei a camiseta por uma camisa de flanela, roubei de meu mano mais velho um pouco de creme Trim para fixar o topete e a colônia ácqua velva de meu pai escorreu por todo o meu corpo magricelo. Estava um matador!

Ao sair, encontrei minha irmã menor sentada no degrau da escada chorando. Aquilo me aniquilou. Podia acontecer tudo na vida, torcer o pé no jogo, levar bordoada da mãe por desobediência, bronca da professora, mordida de cachorro, mas ver a irmãzinha chorando, isso não... Eu não suportava.

Descobri então que nossa cachorrinha Wandeca havia sumido. Era de raça pequenês, muito apreciada em São Paulo naqueles anos. Havia mais de três horas que estava desaparecida.

Saí desesperado em busca de Wandeca. _ Maninha, fique calma que eu dou um jeito! Gritei já largando o portão atrás de mim deixando um rastro perfumado no ar que já carregava gotinhas de garoa.

Encurtando a narrativa, levei duas horas e meia procurando em todos os locais em que seria esperado encontrar o animal e já estava decidido a voltar, feito um Hércules mal sucedido quando me deparei com a cauda branca estirada por detrás do quintal da dona Antonieta. _ Meu Deus, manchas vermelhas! A mascote estava desacordada, levemente ensanguentada. Possivelmente sofrera um atropelamento.

Ergui então Wandeca, com todo o cuidado do mundo e rumei para casa, com as lágrimas escorrendo no rosto transtornado e o coração aos solavancos.

Duas semanas se passaram e por sorte, Wandeca sobreviveu, ficou um pouco manca, mas continuou correndo atrás das bicicletas.

Naquele domingo, perdi o programa na TV, perdi também a possibilidade de namorar Verinha que se acertou com o Sérgio, mas ganhei a fama de herói na família e, sobretudo o apelido de poeta que me acompanhou por muitos anos. Ah, que domingo inesquecível...

Roberto Lopes Jesus