ERA UM TECIDO DE MUITOS METROS DE LARGURA E IMENSURAVEL TEMPO PERDIDO
ERA UM TECIDO DE MUITOS METROS DE LARGURA E IMENSURAVEL TEMPO PERDIDO
Eugenio Malta
A costureira havia perdido a tesoura. Ja’ nao a encontrava apos quase meio seculo de busca inutil. As fabricas ja’ deixavam de tecer o tecido e os teares perdiam o ritmo de teartearteartear… Os teares cediam agora ao ritmo dos martelos sob o esquadrinho das reguas frias das construtoras imobiliarias. A paisagem da metade do seculo XX ja’ nao queria dancar a vida como antes mas, conforme as melodias mundialmente trocadas em decorrencia da Segunda Grande Guerra Mundial. Nem e’ preciso dizer que aqui, nesta cidade, a exportacao de seus produtos vinha perdendo terreno pela importacao de novas ideias vindas do mercado internacional do pos-guerra pois, isto e’ sabido. Tudo aquilo que veio desde as gravacoes da RCA ate’ os deliciosos pacotes da Reader’s Digest era o novo mundo musical.Uma nova forma de producao e consumo estava estabelecida. Mas uma coisa, em especial, a minha tia sabia: a importacao da Carmen Miranda, com o seu prototipo latinoamericano, era a atracao que havia sido usada, como isca pelos americanos, para atrair os sulamericanos a participarem na Guerra contra o Hitler. Isto minha tia sabia e nao escondia em dize^-lo toda vez que servia seus bolinhos de fuba’.
A costureira, que na verdade era minha tia, nos anos 60, nao estava interessada ainda se as fabricas de Paraiburgo iriam parar definitivamente de tecer o tecido. O que ela mais queria, naquele momento, era encontrar a sua tesoura soligen para cortar o tecido e dar modelo na costura. Isto mesmo! Ela queria cortar, romper com a continuidade do tecido para remodela-lo.
Algumas vezes, melhor: todas as vezes quando estive na sua casa ( e diga-se de pasagem, eu adorava ir la’ porque o meu tio possuia uma biblioteca impressionantemente rica para os meus sonhos juvenis) ela me incumbia de procurar pela tesoura. Estive no porao, no sotao e em todos os cantos possiveis da casa e nunca pude ajudar a solver o misterio do desaparecimento da tesoura da minha tia.
Entretanto, um dia, que por inusitada coincidencia, era o de 16 de junho, deparei com o livro do James Joyce na biblioteca caseira do meu tio Octavio. Era o Ulisses. E olha que ja’ havia lido ( acho que atraves de coletaneas de compacta impressao ) o Ulisses original do Homero. Mais ainda: ja’ havia visto alguns filmes via Hollywood sobre Ulisses. No cine Palace, por exemplo, vi um com o judeu Kirk Douglas amarrado no mastro do navio para poder resistir ao canto tentador das sereias.Tenho boas memorias, diga-se de passagem, do Kirk Douglas. 20 Mil Leguas Submarinas, Spartacus sao dois deles. Mas, nada, nada mesmo pode se comparar com a pessoal experiencia que tive quando li o Ulisses do James Joyce.
Com o Ulisses do James Joyce achei a tesoura perdida da minha tia. A tesoura com que ela rompia o tecido linear para dar forma e opcao ao multiplo. Era a tesoura como Leopold Bloom tinha a sua visao particular de Dublin. Uma visao igual&diferente como as tantas outras 54 visoes/vivencias dos outros personagens da mesma Dublin, entende? A relatividade e o sincronismo do multiplo do Ulisses de Joyce estavam de acordo com o corte da linearidade do tecido pela tesoura da minha tia a bem dos variados estilos.
Hoje, sobrevivente no seculo XXI, onde ja’ nao ha’ mais a minha tia, tio, James Joyce, e todas as fabricas com seus operarios em Juizdefora, ocorre, por beleza do destino ,( insisto nisto: POR BELEZA DO DESTINO ) de ser possivel um encontro eletronico entre uma buscadora da verdadeira face de uma simples cidade, a qual possui varias mascaras, em suas transformacoes.
A CIDADE POSSUI VARIAS MASCARAS. Mas nao e’ isto que o velho James Joyce acaba por mostrar em Ulisses?
Entao, num daqueles dias de boa expectativa , estava na fila pra entrar no cinema Sao Luis, na praca da estacao ferroviaria. O filme em exibicao era 2001-Uma Odisseia No Espaco, do Kubrick/Clark. Sabia que eram os gregos de novo. Uma visao futuristica do que seria a tal Odisseia do Homero. Dei de cara com o Jose’ Paulo Netto e sua namorada, a Cida, na saida/entrada do cinema. Eles saiam e eu e Creuza, minha namorada, entravamos. Ele me disse em clara voz: “ e’ este o filme que dizem ser dialetico ?”. Nao havia visto o filme ainda. Deixei meus pensamentos para depois.
Meu entender, apos o filme, e’ que o enigma da existencia ainda e’ pertinente ate’ hoje e agora. O filme e’ sobre um enigma nao solvido. Uma questao vital. Ao meu ver e’ muito mais sobre uma questao do que uma resposta. Tomara que a dialetica possa responder a todas as nossas questoes. Ha’ quem aposta, vota ou reza por ela, sabemos disto.
Contudo, o que esta’ dito ate’ aqui, nesta maneira de dizer, e’ que nunca existiu uma unica Juizdefora. A Juiz de Fora verdadeira existe na multiplicidade das suas intrepretacoes individuais. Uma Juiz de Fora, por exemplo, como a Igreja Romana desejou, ou como a organizacao militar a herdou para ser defendida. Tudo que tem passado naquele espaco geografico as margens do Rio Paraibuna pode muito bem ser transformado num outro espaco vivendis chamado Paraiburgo. E foi.
Aqui, a minha tia, encontrou a tesoura e cortou o tecido sem perdao.
Em outras palavras: o trabalho arduo ( facil de adimitir que nao e’ facil ) da jornalista Christina Musse, apos incansavel busca, encontrou onde houve a ruptura, onde o tecido foi rompido, foi cortado para a modelacao da nova veste.
E’ claro que todos os cortes no tecido ( a principio absurdos e ameacadores ) foram devidamente incorporados a nova forma de reproduzir os modelos. Quem nao dormiu no sleeping bag com os hippies… pode agora dormir nos campings organizados com agua encanada e maquinas de ATM sem nenhum conflito de consciencia.
Mas, um clamor, um grito surdo ainda permanence no ar. E’ o grito que da’ lugar a um livro que conta a historia de que uma cidade, um lugar ou uma fabrica tem tantas faces quanto a sua gente. Muito diferente da ideia de que a cidade e’ a mesma e uma so’para todo sistema ditador ou mandatario. Este livro e’um dos nossos candidatos pela vontade da democracia. O livro sobre o IMAGINARIO URBANO, da jornalista Christina Musse, rompe com a realidade estabelecida sob a forma linear do ponto de vista, forma unica e continua de muitos metros de largura e tempo infinito, assim como a tesoura da minha tia fazia com os tecidos da nossa industrial mineira.