PERFIS MARIENSES (9) – Adauto Paiva
Não conheci pessoalmente essa figura, mas dele tomei conhecimento pelos testemunhos de muitas pessoas de Mari, e posso fazer uma idéia de sua importância para a cultura da cidade. Deixou como espólio, principalmente, seu amor pela cultura popular. Como todas as grandes ações humanas, a vida desse homem ficou como um exemplo e como um mito. O que ouvi dele me deixa de certo modo com o sentimento de respeito e de admiração. Respeito pelas suas ações audaciosas em defesa do folclore, pela seriedade com que tratava a missão de alfabetizar os jovens e adultos de sua terra. O professor Adauto Paiva foi responsável pelo sucesso na região das ações do Movimento Brasileiro de Alfabetização de Adultos, o conhecido Mobral, pedra de toque do regime de força naquela época para ensinar a ler as massas de trabalhadores, capacitando-as como força de trabalho mais ajustada para uma sociedade cada vez mais marcada pelas tecnologias.
A superação das condições que impedem o acesso à escrita e à leitura era um dos grandes desafios para aquele momento histórico, que gera mais pobreza e exclusão social. Mesmo assim, para que uma educação garanta a qualidade, não basta que se aprenda a decodificação ou que se tenha o comprovante de escolarização. É preciso permitir ao ser humano avançar em suas necessidades pessoais e profissionais, possibilitando-lhe interpretar, analisar, conhecer, acrescentar, entender e, por fim, participar, interagindo em seu meio social. Foi essa a visão de Adauto Paiva, levando seus alunos ao envolvimento com a cultura popular, fazendo uma releitura de sua própria realidade. O Mobral fracassou na maioria das cidades onde foi implantado justamente por não ter um Adauto Paiva em cada uma delas, para ir além do contexto escolar, levando os alunos a melhor interagir e participar da realidade em sua volta.
Deste modo, foi o educador Adauto Paiva quem se sobressaiu. Mas Adauto era uma figura muito mais complexa do que se imagina, conforme os depoimentos de amigos e conhecidos. O jornalista Eraldo Luiz me afirmou certa ocasião que comparava Adauto Paiva com o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre: um reacionário brilhante. Se Adauto era reacionário, não posso afirmar, mas conservador, acredito que não. Dizem que ele levava a juventude a se envolver com artes cênicas, música e outras atividades artísticas, que sempre divergia da sociedade local pelo seu modo de vida, seu jeito de se vestir, de tratar as relações sociais. Como dono de cartório, era o oposto do sujeito burocrático.
Os equívocos de Adauto Paiva devem ser debitados ao contexto histórico em que viveu. Confesso que, hoje, distante de Mari, eu não tenho o conteúdo necessário indispensável para quem deseje falar de alguém que já morreu há décadas. Não tenho fatos, depoimentos gravados ou notas biográficas. Não me apoderei de materiais concretos antes de emitir opinião sobre a essa figura tão admirada em sua comunidade. Tampouco o objetivo desses perfis é privilegiar estudos profundos das personalidades enfocadas, nem alimentar polêmicas. Se há um sentimento a presidir esses escritos, é o de homenagear as pessoas que realmente se destacaram na sociedade mariense.
Na peça que escrevi por ocasião dos 50 anos de emancipação política do município de Mari, Adauto Paiva é personagem que aparece no final, dialogando com uma companheira. Ela o recrimina por “entrar em muita confusão, tomando as dores dos outros”. Adauto afirma: “Estou sentido as dores da morte. Sei que vou morrer, mas isso não me preocupa. Eu não quero honrarias. Só não quero desistir de ser eu mesmo. Quem desiste de ser o que é, está desistindo também de viver. No dia em que eu perder essa parte de mim, renuncio à vida. Eu me suicido, Maria...”
Neste sentido, pretendo simplesmente registrar que na cidade de Mari viveu e morreu um homem que até hoje é lembrado pelos de sua geração, Adauto Paiva, de quem ouvi falar com as melhores referências pelo seu caráter e espírito de doação à causa do folclore e da cultura em geral, como um intelectual sensível que foi. Quando cheguei em Mari, fazia poucos anos que Adauto trocara a sua terra amada pela branca paz reservada aos que fazem história. Ao dar a morte a si próprio, Adauto amplificou o mito, lançando um enfoque a mais sobre sua visão de mundo.