Cartas de Salamanca - Estudantes e Cegonhas em Salamanca
"Cigüeña zancuda, sácame de la duda”
“Cigüeña, cigüeñeta, que no me pille la chuleta”
“Por san Blas, cigüeña veras”
Tenho escrito sobre Salamanca. Já falei um pouco de seus aspectos geográficos, de lendas, de hábitos, de cultura... Mas, tudo o que disse, certamente, não compõe um retrato fiel desta milenar cidade. E nem saberia fazê-lo, confesso. Como disse alhures, escrevo como catarse ou por necessidade de arejamento devido à contínua imersão em leituras técnicas exigidas nesse tipo de curso que pretendemos.
Mas, creiam-me, Salamanca é tema, é mote, é leitmotiv, em sentido plural, se é que assim podemos dizer. A cada passo deparamos com um local histórico que suscita uma nota, um comentário, um registro. Ou mesmo com uma situação em que o amálgama homem-natureza sugere um olhar mais acurado, pelo resultado instigante que encerra.
Em meio a tudo isso, vamos elegendo um ou outro assunto. E o leitor, intrigado, poderia perguntar: “Que haverá de comum entre estudantes e cegonhas nessa cidade?”. Pois, respondo-o: ambos são personagens com papéis definidos (?) e que, por vezes, contracenam sob o purpúreo dos dias nublados ou sob a claridade dos dias de verão, ou ainda, em meio ao colorido primaveril, compondo um cenário que também é decorado por belas ruas, praças e edifícios revestidos pelo dourado da pedra de Villamayor.
Permitam-me, pois, que fale sucintamente sobre cada uma dessas personagens, para melhor entendimento do enredo. Os oito séculos de existência da Universidade de Salamanca seriam o suficiente para resumir quão antiga é a relação cidade-estudantes, na qual estes são protagonistas do frenesi que faz parte da rotina urbana. Seria até estranho imaginar a Plaza Mayor, seus bares e cafés, sem aquela agitação ruidosa. Tal qual impensável seria a Calle Van Dick sem a sua notívaga efervescência. Enfim, a chamada geografia humana da cidade, além dos filhos nativos, conta com expressivo número de estudantes que chegam de todos os lugares do mundo – é grande a variedade de nacionalidades –, para cursarem graduação, mestrado ou doutorado e, obviamente, com histórias de vida, objetivos e comportamentos tão díspares quanto às cores das roupas e dos adereços que os ornamentam.
E as cegonhas? “Esguias e altaneiras”, como no dizer de um velho samba, também há muito adornam o painel urbanístico salmantino. E, do alto das igrejas – mais precisamente dos campanários, onde geralmente se instalam –, parece que nos olham de soslaio. E o que será que elas pensam ao observarem nosso cotidiano? Será que desdenham de nossa ignóbil vida apressada? Ou será que simplesmente nos ignoram?
Em contrapartida, em relação às mesmas, seria impossível desapercebermo-nos de seus cadenciados e majestosos vôos. Ou mesmo não tentarmos desvendar um pouco da silente e enigmática rotina que levam. Logo cedo, quando estamos saindo para nossas obrigações, já podemos vê-las em gestos de asseios, como que, de há muito, alimentadas. E, no final da tarde, é comum observá-las sobrevoando as margens do rio Tormes, e, quase sempre, retornando com algo no bico – certamente não é um bebê, como sugere a velha lenda – que, por vezes, devido ao lusco-fusco, nem distinguimos bem se é algum pedaço de madeira para construção ou para conserto do ninho, ou se é uma apetitosa rã para a ceia familiar.
Os aspectos da paciente e cuidadosa nidificação ou da alimentação, as informações sobre o movimento migratório e os conseqüentes retornos, em seus períodos correspondentes (nesse particular, tão parecidas aos estudantes), além de outras idiossincrasias, obviamente poderiam ser encontrados em enciclopédias temáticas. Mas, ao preferirmos a bisbilhotice, no caso específico, não estamos em prática maléfica. Pelo contrário, é como se compuséssemos um panorama ou interpretássemos um papel, no qual a seqüência dos atos carece, a cada dia, de nossos curiosos olhares, ansiosos por descobertas ou, simplesmente, em contemplação àqueles belos gestos que, além de tudo, recordam nossas limitações humanas.
O certo é que, há muito, cegonhas e estudantes cumprem uma espécie de ritual de ensino-aprendizagem, que não se vê escrito em compêndios. Não fosse a sabedoria popular, com seus refrões, ninguém ainda teria captado os tênues urdimentos que pairam sob os céus de Salamanca.