Cartas de Salamanca - Dom Hélder Câmara: Centenário de nascimento
"Se eu dou comida a um pobre, me chamam de santo, mas se eu pergunto por que ele é pobre, me chamam de comunista."
Dom Hélder (1909-1999)
Setembro de 1984. Dirigentes da ONG “Manos Unidas” – unidade de Salamanca – ultimam preparatórios em torno de um evento religioso que promoveriam no mês seguinte. E, entre tantas providências, necessitavam definir onde hospedariam o palestrante principal: Dom Hélder Câmara. Por se tratar de um bispo, eles não tiveram dúvidas em procurar o prelado salmantino para solicitar que o mesmo o acolhesse na residência episcopal.
Dom Mauro Rubio Repullés, após ouvir a solicitação, concordou em hospedar o colega brasileiro – que não conhecia pessoalmente – porém, influenciado pelas noticias que costumava ler em relação às declarações do mesmo, fez uma pergunta que gerou um leve desconforto nos interlocutores: “Vocês não tinham outro nome menos polêmico para convidarem?”
Contudo, todas as dúvidas foram dissipadas. O evento foi um sucesso. Cerca de cinco mil pessoas ouviram extasiadas as lições de paz e simplicidade que o arcebispo de Olinda e Recife pregou naquela tarde outonal. A fragilidade do corpo de Dom Hélder, abrigada sob a tradicional batina bege, nem era notada, na medida em que era superada pela força do seu pensamento que fluía e tomava forma em singelas palavras. Ele se tornava grande e não precisava falar difícil e nem carecia recorrer a uma oratória rebuscada para chegar aos corações. A espontaneidade e a simplicidade eram as armas que cativavam e emocionavam a multidão.
Quando estava ouvindo o relato sobre a passagem de Dom Hélder por Salamanca, não me foi difícil imaginar o cenário e, principalmente, sua preleção, pois no mesmo ano de 1984 tivera o privilégio de assisti-lo em Mossoró. Isso mesmo. Com o propósito de receber o título de cidadão mossoroense, Dom Hélder esteve na terra de Santa Luzia e pronunciou um memorável discurso, cujo teor sacro-humanista, somado à preocupação social, proporcionou um amálgama que, creio, marcou todos aqueles que lotavam o então cine Cid, hoje teatro Lauro Monte Filho.
Mas, voltando à Salamanca, além da memorável conferência daquela tarde, Dom Hélder ainda cumpriu outros compromissos e um deles, em especial, carregado de muita fé e emoção: em Alba de Tormes – pequena cidade localizada no entorno de Salamanca – Dom Hélder fez questão de celebrar uma missa na capela onde está sepultada Santa Teresa de Ávila. E presidiu a celebração para um pequeno grupo de doze pessoas. Dona Ana Mendonza, uma das presentes, relatou-me que jamais poderia olvidar aquele momento tão singular.
Já tive oportunidade de comentar, em outro texto, quão mágico é o lugar onde Santa Tereza viveu os seus últimos dias. Agora, imaginem nesse mesmo lugar uma celebração de Dom Hélder!
O padre Fructuoso Mangas, um dos responsáveis pela visita do prelado brasileiro por estas terras espanholas, disse que a convivência daqueles dias o marcou profundamente. Para o vigário, Dom Hélder era “um homem com uma aura especial, cuja fé e o exemplo de vivência do Evangelho impressionavam”.
Dias depois do evento em Salamanca, uma representação dos organizadores, fez questão de ir novamente ao bispo local, agradecer a hospedagem que o mesmo tinha proporcionado ao colega brasileiro. Dom Mauro Rubio Repullés, diferente do dia em que foram pedir a acolhida, estava visivelmente emocionado e solenemente disse ao grupo: “Vocês não imaginam o que me proporcionaram... Sou muito grato a vocês por esses dias de convivência com esse homem... Já convivi com muitos religiosos, mas nunca um me marcou tanto...”.
Neste ano de 2009, precisamente em 7 de fevereiro, ocorrerá o centenário do nascimento de Dom Hélder Câmara, data especial para fazermos uma reflexão sobre seu legado: exemplo marcado pela fé e por uma vida de doação, resignação e amor ao próximo. Enfim, pela constante busca de querer contribuir para que todos – principalmente os menos afortunados – tivessem vida em plenitude.
Que as comemorações do centenário de Dom Hélder, possam servir para fazer reveberar e multiplicar o seu exemplo, neste momento em que o mundo inteiro carece tanto de paz. Afinal, o “polêmico” bispo, foi um singular modelo do Cristo vivo aqui na Terra. Viva o “Santo da Paz”!