Putrefação
Ácido. É o que corre dentro de minhas veias. Do mais puro e corrosivo ácido. Nada que tenha vindo de cápsulas ou seringas, simplesmente aquilo que me é inerente, que faz parte de minha natureza vil e suja. É ácido que escapa por entre meus lábios, que corrói-me a face buscando fugir de meus olhos, já há muito apagados pelo azedume que provém de seu interior. Azedume, claro, doce é que não haveria de ser, aliás, "doce" é algo que tornou-se para minha boca somente mais um vocábulo praticamente inutilizado.
Abaixo desse monte de tecido sem vida e sem cor, posso ver claramente o fel espalhando-se pelas mais diversas partes desse corpo inerte, esvaindo-se por feridas que jamais se fecham, chagas que jamais se curam, e derramando-se no chão frio que toca a sola de meus pés cansados de se desgastar em vão.
Abaixo do tecido morto e da carne apodrecida há também um torpe e maldito órgão moribundo, que por várias vezes sofreu ameaças de ser arrancado ainda latejante pelas minhas próprias mãos trêmulas, desejosas de colocar logo um fim a toda essa cadeia de amarras, nós e correntes de sentimentos e lembranças na qual eu mesmo me aprisionei.
Incentivado por minha claustrofobia, tranquei-me no fundo falso de mim mesmo, sufocado por devaneios e antigas promessas não cumpridas. Já não desejava lutar, por mim, que a corrente de minhas insanidades me afogasse de vez. No vazio, nem meus gritos de tormento se faziam ecoar, eram abafados pelo silêncio que comprimia minhas costelas e roubava-me o ar. Minhas paranóias tornaram-se minha âncora. O ácido consumiria meus dejetos.
O cheio pútrido já se fazia sentir à distância.