DONA LUZIA E O ANÃO
Todo cronista que se preze tem vários “musos”, pessoas queridas com quem se brinca, visando divertir o leitor, e, simultaneamente, homenagear o protagonista. Não creio que você tenha conhecido a minha “heroína” de hoje (embora ela tenha visitado Linhares em 2008), mas a partir de agora, certamente, irá se apaixonar por essa pessoa especial.
Em 1956, aos 26 anos, nossa “heroína” enjoou de ser “Taxi Girl” em Salvador e, após trocar carta com sua amiga Claudete, residente na Cidade Maravilhosa, para lá decidiu mudar-se. Antes que prossigamos, é conveniente que eu esclareça que o sentido dessas palavras entre aspas, não tinha nada a ver com a tradução: “motorista de táxi”. Esse era o nome dado às dançarinas profissionais, que rodopiavam os salões nos braços dos cavalheiros que os frequentavam nas décadas de 30 e 40. As características principais desse ofício eram as seguintes: as damas tinham que dançar com qualquer um, era-lhes vedado sentar-se às mesas sozinhas ou com fregueses, e proibidas as libertinagens. Cada “táxi girl” possuía um cartão a ser perfurado pelo cliente, a cada rodada de dança, e ao término da noite, era feito o rateio de 50% para casa e os demais para dançarina.
Ao desembarcar na Praça XV, Dona Luzia encontrou sua amiga que a esperava. Ambas tomaram um ônibus para chegar a Botafogo, à casa de Dona Belinha, aquela que viria a ser sua patroa. Como a condução estava muito lotada, elas ficaram de pé. Em dado momento, nossa heroína sentiu um fungada na região da pélvis e ao olhar para baixo deparou-se com um anão dando testada onde não deveria. Deu-lhe umas porradas, falou-lhe uma dúzia de palavrões e o fez descer no primeiro ponto.
Na mansão de Dona Belinha, foram-lhe delegadas todas as tarefas domésticas: varrer, encerar, espanar, lustrar, lavar, engomar, passar, cozinhar, servir... Na segunda manhã no novo lar, após novas orientações, a patroa saiu para tratar de negócios, deixando Dona Luzia encarregada de fazer um bom almoço. “Oxente!”, pensou ela, “onde conseguir um feijão fradinho para fazer um acarajé ou camarão seco para fazer um vatapá “retado”, no Rio de janeiro?” Absorta com esses pensamentos, ela começou a ouvir vozes e se assustou. Quem seria? Dona Belinha saíra e o seu filho Valdinho dormia...? E a voz continuava... Seria alma do outro mundo (ela tinha pavor só de pensar nisso)? Meu Deus! Correu, escondeu-se no quartinho que a patroa lhe destinara, entrou embaixo da cama e lá ficou tremendo.
Após uma meia hora, percebendo que as vozes não calavam as bocas, ela reuniu forças para sair e investigar de onde elas vinham. Ao chegar à sala, percebeu que o som vinha de uma caixa, cujo formato ela nunca vira. Começou a gritar com a dita cuja: “Sai daí, seu anão maldito! O que você está fazendo dentro dessa caixa? Como é que você fez para me seguir?” E a caixa continuava falando com várias vozes, como se não a ouvisse. Dona Luzia continuou: “Não vai sair não? Você vai ver o que vou fazer com você!” Foi à cozinha, pegou uma faca grande, voltou à sala e esfaqueou a caixa todinha gritando: “ Sai daí seu peste! Onde é que você se escondeu?”
Neste momento, diante da gritaria de Dona Luzia, apareceu Valdinho, mal enrolado numa toalha de banho e apavorado gritou: “O que é isso, Dona Luzia, por que a sra. está esfaqueando o rádio? Endoidou?”
Isso mesmo, meu leitor, Dona Luzia nunca vira um rádio, não imaginava que de uma caixa de madeira pudesse sair a voz de quem não está presente, mas não escapou de ter de trabalhar dois anos, sem salários, só para pagar o prejuízo que causara a Dona Belinha.
Alguns anos depois, ela encontrou seu Edvaldo, 12 anos mais novo que ela, e com ele se casou. Mas isso é história para outra crônica. Por ora, adianto-lhe que durante o tempo em que morou no Rio, Dona Luzia falou um sotaque de “baianiroca” (baiano+ carioca). Chiava para falar os SS das palavras, que saiam como DoiX, TrEIX, vocEIX, MeXXXmo..., mas volta e meia soltava um “Oxente! Visse?”. Quando dela zombavam pelo sotaque misturado ou lhe perguntavam onde nascera, ela respondia: “NaISCI em Santa InEIX, pertinho de Jequié”. Bem, se o ouvinte não soubesse que Jequié fica na Bahia... ficaria sem entender nada.
Essa é a homenagem que faço a uma Sra. fantástica, que partiu desta para melhor no dia 04 de maio de 2009, num hospital de Vila Velha. Não duvido nada que ao chegar à porta do céu ela tenha perguntado a São Pedro: “Chegou um anão safado aqui?”