Tiro pela culatra
Não que fosse inteiramente dedicado aos vícios da carne, mas não dispensava uma linda morena se ela quisesse manter um relacionamento discreto. Casado, evitava despertar os ciúmes da esposa, apesar de frequentemente provocá-la inventando peripécias amorosas com outras mulheres nos caminhos da imaginação.
Os caminhos da imaginação ficaram para trás quando se envolveu seriamente com a faxineira do restaurante industrial. Trabalhavam praticamente nos mesmos horários, roubando trinta ou quarenta minutos diários para conversas, beijos, abraços e amor.
A esposa ignorava as aventuras do marido. Preocupava-se com a escola dos filhos, os jogos de carta do pai e as revistas semanais de fofocas que antecipavam incorretamente os capítulos das novelas da semana. Sua vida continuaria cotidiana e irrelevante se o bolso da calça do marido não contivesse um poema de três linhas, escrito numa letra redonda azul e cingido de corações vermelhos atravessados por flechas mal desenhadas.
Se até aquele momento as provocações do marido e as indiretas das alcoviteiras não lhe tiraram o bom humor, o poema de Manuel Bandeira, dando nome à amante, fizera-a perder a noite, rolando de um lado a outro na cama, olhando raivosamente o marido, dormindo tranqüilo, barriga grande virada para cima.
- Eu te mato, ah se te mato, sussurrava, apoiando a cabeça na mão esquerda.
Quando o sol irrompeu a janela de vidros velhos do quarto do casal, a esposa já dispusera uma bandeja de café da manhã. Queijo, presunto, ovos mexidos, pão francês, baguete, margarina, suco de uva e de laranja, café, leite, chocolate, duas fatias de mamão e de melão, dois cajus e um copo de vinho do porto. O marido começaria a devorar os alimentos sem remorsos, entretanto pensou que esquecera alguma coisa. Aniversário de casamento? Aniversário dela? Aniversário de algum dos filhos? Data especial? Por que a simpatia insólita?
- Eu te amo. Fiz esse agradinho só porque te amo!
O marido sorriu, beijou-a rapidamente e parou na esquina a fim de esperar a passagem do caminhão do lixo. A esposa, acordara cedo e emprestara a moto do irmão, seguiu-o, parou a alguns metros do restaurante, embaixo de uma árvore velha e enlouqueceu ao vê-lo estacionando, beijando uma mulher que não era nem bonita, nem jovem, mas visivelmente fogosa.
Abriu o banco da moto, tirou um cano de ferro, jogou o capacete lá dentro e caminhou rapidamente para o restaurante. Tão rapidamente que o marido e a amante ainda não tinham alcançado a porta quando a esposa, gritando “meu bem”, acenou e estraçalhou vidros, teto, lataria e faróis do automóvel cuja última prestação seria quitada em três anos.
Marido e amante dispensados antes do almoço. Para o marido, o problema seria contornar a situação em casa, enrolar a mulher, inventar uma desculpa aos filhos e ficar algum tempo trancado para fugir dos olhares interrogativos dos vizinhos.
Pensando no desemprego involuntário, a amante procurava um lugar para passar a noite até que o marido, motivo de chacota de amigos que já deveriam saber da notícia, esfriasse a cabeça.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 28 de maio de 2009.