MEU ARQUIVO PROFISSIONAL

MEU ARQUIVO PROFISSIONAL

Numa reunião pedagógica entreti-me ouvindo uma discussão acirrada sobre metodologia, distraída cerrei os olhos , me achei dentro de uma sala. Era uma sala interessante como poucas que já vi. Tudo ali dentro se tratava da minha pessoa e numa parede havia uma infinidade de gavetas, todas abarrotadas de cartões. Eram cartões simples como esses cartões de fichamento ou de biblioteca onde se relacionam livros. Os arquivos tomavam toda a parede; do chão ao teto e cada gaveta daquela parecia não ter fim... tinham muitos títulos.

Quando me aproximei desses arquivos, o primeiro que me chamou a atenção foi: “Os alunos que tive”. Abri o arquivo e comecei a ler os cartões. Listas de nomes e sobrenomes desfilavam diante dos meus olhos. Surpresa eu ia recordando cada rosto, cada sorriso, figuras que eu não me lembrava há muitos e muitos anos.

De repente, sem ninguém precisar dizer, descobri onde estava. Esta sala estranha, era na realidade o catálogo da minha vida, aquele arquivo que eu examinava era o arquivo da minha vida profissional. Ali estava tudo organizado por ações, todos os meus momentos, grandes e pequenos, em detalhes que minha mente não podia acompanhar.

Um senso de curiosidade, espanto, misturado com horror, mexia em mim quando abria qualquer gaveta para descobrir seus conteúdos. Alguns me traziam belas alegrias e contentamento, saudade das memórias. Outros me traziam vergonha, tão grande que olhei por trás de mim pra saber se tinha alguém espiando.

O arquivo intitulado “Colegas” estava ao lado do “Colegas que não ajudei”. Os títulos iam dos simples bate-papos aos “Cavalos do Governador,” “Livros que emprestei,” “ Mentiras que contei,” Conselhos que Dei,” “Piadas que Contei”... Alguns eram hilariantes à sua exatidão; “Coisas que dividi com meus colegas”. Outros já não podia nem rir: “Coisas que fiz com Raiva”, ”Palavras que Proferi contra meus superiores”, ”Alunos que Castiguei”, “Pais que Atendi Mal”, ”Alunos que Ignorei”, “Fofocas que Dei Ouvidos” .

Eu não cansava de me surpreender a cada conteúdo que me apresentava. Tinha normalmente mais cartões do que eu presumia . Às vezes menos cartões do que eu sonhava. Estava aparvalhada pelo volume de coisas que fiz durante minha pequena carreira. Como poderia ter tido o tempo necessário para escrever estes milhões de cartões, cada qual à sua exatidão ?!?

Mas cada cartão confirmava a verdade. Cada um estava escrito com meu próprio punho, e com minha assinatura.

Quando puxei um arquivo ”Minhas Avaliações”, vi que o arquivo crescia para conter o conteúdo deste. Depois de puxar uns 4 ou 5 metros, resolvi fechá-lo, envergonhada, não somente pela qualidade duvidosa dos enunciados, mas também pela dubiedade de suas perguntas. Era um vasto tempo perdido ali representado.

Cheguei num arquivo intitulado “Pirraças de mestre”, senti um calafrio correr por todo meu corpo. Abri-o, só um pouquinho, pois não estava a fim de testar o tamanho, e tirei um dos cartões. Fiquei arrepiada pelo conteúdo.” Não fez a tarefa ? vou tirar dois pontos de sua nota! E se você reclamar dou-lhe zero!.” Me senti mal de saber que este momento foi gravado.

Uma raiva incontida tomou posse de mim. Um pensamento me veio: “Ninguém pode saber da existência destes cartões! Ninguém deve entrar nesta sala! Eu tenho que destruir tudo !”

Em movimentos bruscos puxei as gavetas e despejei milhares de cartões, não me importei com a quantidade que se amontoava aos meus pés ou quanto tempo eu levaria. Tudo que eu queria era apagar aqueles arquivos. Tentei atear fogo e os cartões não entravam em combustão, Tentei rasgá-los e eram duros como metal... Desesperada e derrotada, coloquei os arquivos de volta aos seus lugares. Sentei num pequeno banco e coloquei a cabeça entre as mãos deixei escapar um longo suspiro.

Aí eu o vi. Estava lá, novinho, como se nunca tivesse sido usado, a argolinha de puxar brilhava douradinha, debaixo o título “ As vezes que me propus mudar”.

Puxei o arquivo.

Cinco centímetros de comprimento, podia conter o cartãozinho em minha mão.

Ao lado um outro título, “Oportunidades de Mudança que Tive”. Abri o arquivo, ele era imenso... centenas de cartões enfileirados; todos repletos de sugestões. Quantas oportunidades perdidas! ... E aquele único cartãozinho ali, na minha mão.

Aí as lágrimas brotaram. Comecei a chorar. Soluços profundos sacudiam-me o corpo. Recostei-me na parede, com os olhos fechados ergui a cabeça, as lágrimas tomaram um caminho diferente: corriam pelos lados dos olhos e nas pontas das orelhas pingavam nos meus ombros como se quisessem aliviar o peso sobre eles arriado.

Lentamente fui deslizando pela parede até sentar no piso frio de cimento queimado. E continuei ali, chorando. Chorei de vergonha, de pura vergonha. A infinita parede cheia de arquivos, foi embaciada pelas lágrimas e até parecem que olhavam piedosamente para mim!

Ninguém pode saber disso. Tenho que trancar esta sala e guardar seguramente a chave!

Ainda com os olhos fechados, senti levemente duas mãozinhas que me enxugavam as lágrimas. Cansada abri lentamente os olhos e diante de mim vi um par de olhos castanhos encravados em um rostinho comum adornado por maltratados cabelos castanhos. O largo sorriso mostrava os dentes irregulares mesclando falhas pela troca de dentes–de-leite por permanentes, com pontiagudos dentinhos brancos, tortos pelo uso desmedido de chupeta.

A voz saiu num fio quando indaguei:

Quem é você? O que quer? Quem o trouxe aqui?

Surpreendeu-me a segurança com que proferia as palavras.

“Eu sou sua oportunidade de remissão. Quero ajudá-la a melhorar seu arquivo e quem me trouxe aqui foi JESUS. Todos os anos Ele oferece a todos os professores milhares de oportunidades como eu para que vocês possam nos ensinar a ser cidadãos e nós, ensiná-los a ser mais humanos. Pena que nem sempre nos tornamos bons cidadãos e vocês nem sempre agem conforme Jesus deseja”.

ELE me disse que nós crianças somos a argila que é moldada pelo professor e desse professor depende a qualidade do vaso que nos tornamos. Você quer me tornar um vaso que abrigue flores para glorificar a DEUS ?!

Por Wanderlice de Souza Carvalho.

Apucarana, 16 de janeiro de 2003.

wanderlicedsouza
Enviado por wanderlicedsouza em 28/05/2009
Código do texto: T1618907
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