A valsa do mendigo
A valsa do mendigo
(Goiânia, GYN, rua 3, Avenida Anhanguera, conto, mendigo)
Toda cidade é uma realidade inconfundível, com características muito próprias, que resultam num universo particular, que muda, se movimenta e expande, freneticamente.
Dentro desta realidade, a população, um contingente de destinos, propósitos e necessidades, que se constitui na mola propulsora da vida e do movimento.
A paisagem urbana muda - e, na mesma medida muda a paisagem humana. Uns poucos tipos remanescem pelos bairros, inafastáveis, como testemunhas de todas as mudanças - relojoeiros, corretores, alfaiates, malandros e... mendigos.
No centro da cidade, existem pontos em que os mendigos se fixam, como que grudados à calçada ou amarrados aos postes da rede de energia elétrica. Marcam território, exigem reconhecimento da soberania sobre ele. Ninguém se mete...
No cruzamento da avenida Anhangüera com a avenida Goiás, me lembro, havia um pedinte cego, que passava o dia agarrado à sanfona, massacrando a melodia de músicas sertanejas e nordestinas. Batia teclas e cantava numa altura absurda, a ponto de superar todo o ruído ao redor e, chamar a atenção para si. Parava, conferia a latinha de moedas, agradecia ou praguejava baixinho, ajeitava os óculos escuros e, recomeçava.
Vi essa cena todo dia, anos seguidos, enquanto a paisagem urbana e humana do centro da cidade mudava dramaticamente, empobrecendo, que só.
Um dia, dei pela falta do tal mendigo e seu concerto azucrinante. havia desaparecido cafuzo e, sua remendada sanfona vermelha.
Tempos depois, mudei de local de trabalho e, tinha passado pelo centro, para resolver um problema qualquer. Parei no sinal fechado da rua 3 com a avenida Goiás. De repente, ouvi o som da velha sanfona e, imaginei que o velho mendigo havia mudado de ponto. Que nada. Logo, apareceu entre os carros, um outro mendigo - um mendigo meio soturno, que sempre pedia uns trocados por ali, com a sanfona vermelha sobre a pança, tocando uma valsinha, sem se arriscar na cantoria...
O mendigo da rua 3, em vez de comprar as luvas do lugar do mendigo da avenida Anhangüera (aparentemente melhor), fez opção pelo chamariz que o outro utilizava - a sanfona!
Sorte que, O mendigo da rua 3, dominava melhor o instrumento que o outro (o que ele demonstrava pelo olhar confiante e o sorriso estampado no rosto esculpido pelo sol)...