A peleja de Zé Xavier com Manoel Xudu

Essa quem me contou foi Biu da Pedra, caboclo bom e inteligente, poeta repentista conhecedor da vida de Salomão, Moisés, Jacó e outros profetas e reis. Dizem que Biu da Pedra foi um dos fundadores de Mari, no tempo em que esta região estava sendo colonizada e era conhecida por Araçá. Há controvérsias. Verdade mesmo é que Biu da Pedra era bicho macho no comércio de jarambada, conhecido também como “negócio de cigano”.

Pois bem, Biu da Pedra conheceu, tomou cachaça e participou de inúmeras cantorias com o Príncipe dos Poetas Populares do Nordeste, o terrível Manoel Xudu, nascido em São José dos Ramos, boêmio errante que encantou várias gerações com sua poesia pura e belíssima. Aqui em Mari, Manoel Xudu cantou com outros vates marienses de peso como Nezinho de Paula, Antonio Julião, Manoel Ribeiro, Zé Hermínio e tantos poetas autênticos da velha Araçá e da nova Mari, entre eles, Zé Xavier Gonçalves, misto de político e repentista.

Num dia de agosto do ano de 58, Manoel Xudu encontrou-se em Mari com Zé Xavier e Nezinho de Paula, começando uma contenda na bodega de Manoel Ribeiro, outro “cão chupando manga” no traquejo da viola. Depois de 14 garrafas de cachaça “Beba Ela”, Biu da Pedra deu um mote a Xudu:

Cleópatra Rainha do Egito

Messalina Rainha do Romano.

O consagrado Xudu fez versos de ouro com o tema, os quais, infelizmente, Biu da Pedra não guardou na memória. Lembrava apenas de um trecho:

Madalena mulher escandalosa,

Filha legítima de Betânia,

Abalou toda aquela Babilônia

Com seus trajes e roupa vaporosa.

Sua mãe era muito virtuosa

E seu pai trabalhava todo o ano,

Mas Lázaro já havia feito um plano

E a Maria deu um castigo maldito,

Cleópatra Rainha do Egito,

Messalina Rainha do Romano.

Nesse momento passava uma vaca com seu bezerro, e Biu da Pedra, na qualidade de fiscal da Prefeitura, prontamente deu voz de prisão ao animal. Xudu aproveitou o tema e cantou:

Quanto é bonito a vaca

Se destacar do rebanho,

Dando de mamar ao filho

Quase do mesmo tamanho,

Lambendo as costas do bicho

Porque não sabe dar banho.

Nezinho de Paula entrou na cantoria, já passava da meia-noite e o grande Xudu assim cumprimentou o amigo:

Seu Nezinho eu já conheço,

Não preciso mais falar,

Que na família de Peba

É quase um tamanduá,

Grande poeta e pachola,

Quando pega na viola

É da tampa pipocar.

Começaram um quadrão perguntado, esbanjando rima nesse estilo muito popular no Nordeste. De repente, Zé Xavier acochou Xudu:

Já cantei em armazém,

Cantei até em depósito...

Xudu revidou:

Tu sabes que não tem rima,

Tu ta cantando a propósito...

É que a palavra DEPÓSITO só tem uma rima: PROPÓSITO. O quadrão foi a chave da festa, quando os primeiros raios do sol já atingiam a vila de Araçá, e o astro-rei espalhava sua chaga de luz pelos abacaxizais afora. Chegou um vaqueiro e pediu umas estrofes nos oito pés a quadrão. Manoel Xudu pipocou pra cima do destemido Zé Xavier:

A natureza é incrível,

Faz a terra no seu nível,

Girar de modo impossível

Causando admiração...

O relâmpago, o trovão,

Arquivam-se pelo espaço

Ligados pelo mormaço,

Lá vai meus oito a quadrão.

Zé Xavier pescou na fonte de sua criação e tirou o peixe:

Sou um cabra do cangaço,

Brigo de perna e de braço,

Com a zoada que eu faço

Assombro qualquer cristão.

Eu vou cantar no Japão,

Lá nos Estados Unidos,

Dou quarenta e três gemidos

Nos oito pés a quadrão.

Passou a noite, a cantoria passou, e passou também Manoel Xudu, que morreu há uns anos atrás. Morreu vítima de sua vida errante, boêmia, cantando pelas quebradas do mundaréu, tomando “zinebra”, passando fome e alimentando os corações simples e puros de seus ouvintes com o manjar de sua poesia. Biu da Pedra, que também já se foi, recordava saudoso o grande Manoel Xudu, que foi cantar no céu a manifestação mais viva da inteligência do Nordeste. Certo dia, na fazenda Taumatá, Antonio Julião encontrou-se com Zé Xavier e pediu um mote:

"Viola, se tu falasses,

Dirias quem foi Xudu...”

Dizem que Zé Xavier fez versos tão bonitos que Assis Firmino pegou a chorar no ombro de Julião...

(Publicado no Jornal Alvorada, de outubro/1993)

Fábio Mozart
Enviado por Fábio Mozart em 26/05/2009
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