CONTANDO À ZÉLIA POR QUE NÃO GOSTO
DO SCHOPENHAUER
 
 
                  Eu tinha catorze anos, ainda nem me menstruara, nada sabia especificamente das mulheres. Tinha tranças de um cabelo fino, brilhante, sedoso e castanho. Eu penteava os cabelos de modos diferentes por puro prazer. Ora com as tranças largas e terminando por um belo cacho nas pontas de modo que ela não se soltava, mesmo correndo pelas ruas de Leopoldina ou pedalando pela Estrada Rio - Bahia. Durante a vida toda eu tivera tranças. O noivo da minha irmã, o engenheiro Antonio, elogiava meus cabelos e dizia que eu tinha a pele mais linda que ele já conhecera. Tal apreciação me deixava feliz e me sentia bela. Outra apreciação diária sobre as minhas tranças era o meu Professor de Matemática, que eu adorava e que também eu era sua aluna predileta. Um professor extraordinário, português, inteligente e criativo. Suas aulas foram famosas no Colégio Leopoldinense e era muito bravo com alguns alunos, mas comigo eu era homenageada por ele no início da aula, que foi uma das coisas mais lindas da minha vida. Fiz o Ginásio e o Científico com ele. Eu sentava na frente dele na primeira carteira, cativa já, Já entrava sorrindo de alegria escancarada e o fitava, adorando. Acho que o carinho que meu pai não expressava foi compensado pelas palavras do Professor Machado: “A Luizinha hoje veio com fitinhas brancas nos cabelos!” Ou: A Luizinha hoje veio com borboletas azuis nas pontas das tranças!”E a aula de Matemática era a minha grande diversão que ele fazia a Matemática ser a coisa mais divertida do mundo, ainda mais com aquele carinho já sabido e respeitado por todos. E era tão puro, natural e verdadeiro, que nunca ninguém reclamou ou criticou. Ao contrário, fiquei famosa.
         E tinha o jardineiro do jardim do colégio que cultivava rosas variadas, e uma delas era em cachos, pequenas e rosa claro, com um perfume muito delicado que combinava com o meu romantismo. Ele me dava a florzinha mais bela para eu enfeitar os meus cabelos. E eu usava nos cabelos com toda a minha verdade e pureza, de modo que não era visto como ridícula ou maluca. Eu era apenas diferente e ditava meus modos.
         Eu era uma menina que “vivera um inferno de dois anos, dos nove e dez anos, em Belo Horizonte”, que, Leopoldina foi pra mim um céu, e eu me reergui adquirindo meus valores morais, intelectuais e talentos, tudo deu certo lá. Leopoldina só não superou a cidade de Visconde de Rio Branco que foi dos meus mais tenros anos, um lugar onde mora a felicidade.
         Lia tudo que me caia nas mãos, sem a menor referência, como acho que já falei aqui no Recanto.
         Nessa época, eu formei uma idéia simples sobre homem e mulher. Que ser mulher era bom, porque quando crescesse eu não iria para a guerra.
         Nunca soube nada de Schopenhauer, só sabia que era filósofo. E filósofo, em algum lugar, já tinha aprendido que eram os donos da verdade. Eram inquestionáveis.
         Você, Zélia Maria Freire, vai reconhecer que livro eu li, que eu mesma nem sei. Mas nesse, o filósofo falou:
“Que a mulher era de cabelos longos e de idéias curtas. Só o homem era inteligente e tinha os cabelos curtos”.   
         Foi uma bomba para mim. Durante os meus catorze anos eu tive vergonha de ser mulher. Fiquei humilhada de não ser menino. Sofri uma infelicidade engolida, e odiei aquele homem horroroso. Não o questionei sequer, pois tinha noção que, como filósofo, falava a verdade. Calei-me e a vida ficou sem graça.
         Mas continuei lendo outros livros. E, numa ocasião em que minha mãe foi a Petrópolis e ficamos em casa sozinhos com nosso pai, eu pedi pra ele cortar as minhas tranças, antes que minha mãe voltasse. Ele ficou com pena, mas eu implorei que cortasse os meus cabelos, sem dizer nenhum motivo. Tinha que aproveitar a ausência dela, pois ela não deixava cortar as minhas tranças, que ela gostava. Ele nunca soube a razão da minha vontade. Ficou horrível, mas adorei o cabelo cortado. Continuei desiludida, por baixo durante uns meses.
         Antes do final daquele ano eu já esquecera o filósofo e as minhas idéias, e voltava a ter orgulho de mim e de cabeça nova feita.
         Mas senti mais ou menos que perdi os meus catorze anos. E o nome dele para mim é palavrão.