Tão difícil como ter é manter
O crescente número de desempregados, os baixos salários oferecidos pelos patrões diante da oportunidade, “a crise mundial”, da qual se aproveitam, justificando tais medidas, humilham profissionais e estagiários com propostas de rendimentos que apenas cobrem as despesas de idas e vindas, da casa para o trabalho e do trabalho para casa, salários apenas ilustrativos para que este infeliz não se diga fazer parte desta camada de excluído. Quadro de uma situação atual que impossibilita uma família de honrar suas despesas, seus compromissos e até mesmo de se manter.
Diante de um salário cada vez mais achatado o brasileiro se vê obrigado a mudar seu hábito de consumo, cortando gastos e privando-se de tudo que podem ser considerados supérfluos, deixando-os para segundo plano e para novas possibilidades, arte que o brasileiro sabe fazer com grande maestria, acostumado com estatísticas de governo após governo de que a situação está melhorando, vive na expectativa de um dia este melhoramento também bater em sua porta.
Mas, por mais que se mudem os hábitos de consumo e se reduzam gastos, a vida precisa ter seu fluxo normal, “natural”, não podendo ser estagnada, interrompida abruptamente, e, de repente, abandonar-mos tudo, deixando de lado os benefícios conquistados, dos quais estamos acostumados, seria impossível, afinal, vivemos em uma sociedade tecnologicamente avançada, a qual nos ensinou modos práticos facilitadores de nossas vidas, para que não perdêssemos tempo inventando a roda.
No entanto, só os cortes dos gastos e as privações não são suficientes para manter o equilíbrio familiar, estes seriam fáceis de administrar: garantiríamos a alimentação, a água, a luz e o gás, os demais improvisaríamos: cadernos escolares, por uma folha de papel qualquer. O telefone: acudiríamos do tão utilizado orelhão. O carro: deixaríamos no abrigo passando a usar o sofisticado coletivo. O plano de saúde, já cortado, seria substituído pelo eficiente SUS (Sistema Único de Saúde). O passeio de final de semana limitaria às casas dos parentes. Nossos eletrodomésticos não arrumaríamos. Nossa residência: não faremos mais manutenção. As roupas: ficaríamos com estas que estamos tão acostumados, idem com os sapatos, tão bem moldados. Nosso dente deixaria que a natureza os cuidasse. Nossos jantares e almoços “fora”, seriam em nosso belo e improvisado quintal. Não compraríamos mais nenhum livro, jornal e revista, afinal, se a internet ainda tiver condições de ser mantida, temos opções. Os cabelos, manicure e pedicure, deixam de ser hábitos higiênicos e tornam-se evento de luxo. O cinema culturalmente freqüentado, sede lugar ao entretenimento massificante - a televisão. Todos estes problemas são de fáceis resoluções e estão ao alcance da maioria da população, mas os imprevistos, as despesas impositivas, estas sim, quebram toda a rotina e orçamento familiar, acarretando desgosto, stress, falta de perspectivas e uma visão cética do futuro.
Nessas condições de corte. De ter e manter, a situação se agrava quando o orçamento tem de ser desviado para os imprevistos, tais como: manutenção da televisão, do computador, do carro, do telefone, do microondas, da geladeira, do fogão, do aparelho de som, da impressora, etc., aqui reside os maiores obstáculos. A sociedade de consumo criou de forma tão sutil mecanismos de dependência que nos impossibilita de abrir-mos mão de um ou de outro, e quando precisamos de um conserto qualquer, dos objetos citados, quase sempre ouvimos a resposta: “Não compensa ser arrumado. É mais aconselhável comprar um produto novo”. Com exceção do carro, apesar de velho, ainda não fui surpreendido com esta resposta. Deparamos-nos então com o dilema: ou compramos um novo ou ficamos com o velho sem arrumar, portanto sem uso. Se arrumarmos o velho o valor será quase ao novo, o que seria mais apropriado, pois se compramos um novo teremos o salário ainda mais comprometido. Impossível diante da situação apresentada, conclusão: não podemos arrumar o que já temos e nem comprar um novo produto, apesar de todos os cortes efetuados e despesas contidas.
Não bastassem os imprevistos, temos as despesas impostas, com que nos deparamos diariamente, e as que nos chegam a nossa residência, sem ser de nossa livre vontade, cito alguns velhos conhecidos: O IPVA, o IPTU, o carnê de asfalto, com 48 mensalidades para pagar, o imposto de renda que temos de declarar, as tarifas de energia, de água e telefone que sobem. A brincadeira com os números nos supermercados que oscilam de acordo com a concorrência sem ter coerência. Em nenhum desses itens temos domínio, ficamos perplexos, mas, atados, restando nos pagar. Não sei como? Mas, teremos que pagar. Talvez agora retirando da alimentação.
O homem constrói uma sociedade de descartáveis onde quase nada se arruma, compra-se novo. Cobra-se impostos para tudo, em nome de uma democracia, qualidade de vida, segurança. Mas, não consegue dar ao homem o mínimo suficiente para que ele seja digno de usufruir de tais benefícios, contradição de princípios e egoísmos individualistas, onde uma pequena camada se regozija de tantos privilégios e outras com salários apenas simbólicos não conseguem arrumar a própria televisão.