BORGES E O POEMA DE AUTOAJUDA

Acho que foi em 2005, orientava oficinas de textos, quando uma amiga falou do poema intitulado Instantes (ou Momentos), com “dicas” de mente positiva, de autoria de Jorge Luis Borges. Minha primeira reação foi gritar: Não pode ser de Borges! Ela insistiu, dizendo que o texto estava circulando pela Internet.

Eu retruquei: Borges escrever um texto de mente positiva? É algo assim como um bêbado declarar seu amor pela água mineral!

O poeta cego, escrevendo temas de positivismo mental? Borges? Aquele cego de voz amarga que eu havia escutado em uma palestra em 1970, quando estudava filosofia em meu país? A turma o escutou em silêncio, olhando-o como a um ídolo. Apesar de muitos o odiarem por sua posição política (extrema direita).

Ele divertiu a plateia com frases irônicas como: “as pessoas têm o mau costume de morrer”, ou “minha mãe tem tantos anos que ela não é eterna, ela é imortal”. Depois falou dos paradoxos de Zenon de Eleia.

Só participei dessa palestra. Se fosse hoje, não perderia uma única oportunidade de escutá-lo. Mas, na época, eu era jovem e estava mais interessada em passar longas horas em bares, discutindo temas de filosofia com meus amigos Alice, Jorge e Cristina, que em escutar um gênio como Borges. Vocês sabem como é... aos 20 anos, a gente se acha dono do mundo – e demora um tempo até entender que o mundo é que é o dono da gente.

Escutei dizer que Borges reclamava de tudo – mas isso é cultural. Afirmam que os argentinos nascemos reclamando do médico e das enfermeiras. E nossas primeiras frases não são: Eu amo a minha mãe, nem eu amo meu pai. Mas: Mamãe, a fralda está apertada. A mamadeira está fria...

Lembrei-me do conto O Imortal. O final reduz o conhecimento e a vida humana a palavras... Esse Borges irônico, mordaz, cáustico, filosófico, amante dos livros de Schopenhauer e dos paradoxos de Zenon, havia escrito um texto de mente positiva, antes de morrer?

Bem longe dos textos positivos (ajudam as pessoas, mas não têm valor do ponto de vista da literatura), Borges sempre foi um aristocrata da palavra. Adorava reformular o mundo. Sua visão não podia ser contida nem limitada no acontecer diário. Em um texto, ele alega que existem dois Borges, um que levanta da cama, toma o café, faz a barba. O outro Borges, ele vê nas enciclopédias, nas revistas literárias. E termina, deixando uma dúvida sobre o leitor: Não sei quem está escrevendo esta página, se eu ou ele.

O que deslumbra em Borges é sua escrita que nos leva por caminhos imprevisíveis. É sua visão do mundo. Sua linguagem cultíssima, consolidada por muitas horas de leitura e estudos. Borges provoca, desestrutura e mostra ao leitor que o mundo pode ser interpretado de outras maneiras. O poema: “Instantes”, de autoria de Nadine Stair, é como um acalanto. Os poemas de Borges são turbilhões. Estéticos. Intensos. Avassaladores. Sacodem nossa sensibilidade.

A literatura era sua matéria prima. Ele foi um pensador. Um criador apaixonado, de visão singular. Borges nunca gostou de elogios diretos. A um jornalista que o chamou “um dos grandes literatos de nosso século”, Borges respondeu: “é que este foi um século muito medíocre”.

Comprovou-se. O poema era de uma velhinha chamada Nadine Stair, que queria dar uma mensagem ao mundo. Abordei o assunto porque uma pessoa - também poeta - disse-me que, para ela, o poema era de Borges, e que havia uma confabulação para ocultar seu arrependimento da forma como havia vivido. A verdade é que todos estamos arrependidos de alguma coisa – ainda que nem sempre o confessemos. Morrer é fechar o livro, sabendo que não poderemos escrever nem mais uma linha. Enquanto somos jovens, a luta pela vida nos arrasta como um maremoto, mas com os anos, declinamos de muitos de nossos sonhos e lutas.

Pensar que Borges poderia ter refletido sobre o assunto... talvez. Isso não sei. Porém, acreditar que Borges pudesse ter sido o autor desse poema repetitivo, sem metáforas, sem jogos linguísticos, sem pensamento crítico, é um pouco de ingenuidade.

A viúva do escritor, Maria Kodama, declarou que teve de ir à Justiça deixar registrado que o texto não era de Borges e que ela, como sua herdeira, se negava a receber os direitos autorais dele advindos.

Esclareço que eu gostei da mensagem, mas seria muito estranho atribuí-la a Borges. Instantes, de Nadine Stair, é um texto singelo, direto. E as mensagens são lindíssimas!..

"Se pudesse vi ver novamente a minha vida,

na próxima trataria de cometer mais erros.

Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.

Seria mais tolo ainda do que tenho sido,

na verdade, bem poucas coisas levaria a sério.

Seria menos higiénico.

Correria mais riscos, viajaria mais,

contemplaria mais entardeceres,

subiria mais montanhas, nadaria mais rios.

Iria a lugares onde nunca fui,

tomaria mais sorvete e menos lentilha,

teria problemas reais e menos problemas imaginários.

Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata

e produtivamente cada minuto da

sua vida; claro que tive momentos de alegria.

Mas, se pudesse voltar a viver,

trataria de ter somente bons momentos.

Porque, se não sabem, disso é feita a vida,

só de momentos,

não perca o de agora.

Eu era um desses que nunca ia a parte

alguma sem um termómetro,

uma bolsa de água quente,

um guarda chuva

e um pára quedas;

se voltasse a viver, viajaria mais leve.

Se eu pudesse voltar a vive,

começaria a andar descalço

no começo da primavera

e continuaria assim até o fim do outono.

Daria mais voltas na minha rua.

Contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças,

Se tivesse outra vez uma vida pela frente.

Mas, já viram, tenho 85 anos

e sei que estou morrendo.»

Lembremos que Borges afirmou: “Não criei personagens. Tudo o que escrevo é autobiográfico. Porém, não expresso minhas emoções diretamente, mas por meio de fábulas e símbolos. Nunca fiz confissões...”

Vamos ver a diferença de linguagem, de estilo e de postura, lendo um poema (verdadeiro) de Borges. Você estará de acordo comigo, os estilos são muito diferentes.

AS COISAS (Tradução de Ferreira Gullar)

(...)O rubro espelho ocidental em que arde

uma ilusória aurora. Quantas coisas,

limas, umbrais, atlas e taças, cravos,

nos servem como tácitos escravos,

cegas e estranhamente sigilosas!

Durarão muito além de nosso olvido:

E nunca saberão que havemos ido.