RECOMEÇOS




As portas da minha nova residência foram abertas em uma noite terrivelmente abafada para uma paulistana que aprecia temperaturas amenas. Detesto coisas mornas, mas me reservo o direito de pensar diferente quando se trata do clima.


Ali, distante da difícil arte de temperar, rendida pelo calor excessivo e desconfortável, senti os primeiros acordes de uma composição que dava o novo tom da minha vida.


Esta mudança colocaria à prova a bagagem que acumulei. Nem sempre o que trazemos pode ser útil. Muitas vezes, a inutilidade do que guardamos é a única ponte possível para o entendimento - ou desentendimento - da realidade. Restava descobrir como e quando aprender os sinais de outra linguagem.



Por não compreender o que me cercava, a partir de um certo momento, passei a transitar como alguém em terreno minado: medrosa e atenta. Certas coisas não podem ser digeridas antes da hora. E uma estranha certeza acompanhou estes pensamentos: o silêncio seria tão difícil quanto uma possível tradução.


A beleza deste lugar contrastava com o sentimento de perda ou saudade. A ausência de laços tornava meus olhos opacos. As ruas daquela cidade não descortinavam caminhos familiares. Canto algum teria o efeito de aguçar lembranças, evocar passagens ou provocar sentido.


Logo me dei conta do quanto precisaria viver ali até sentir que havia construído referências. Uma enorme tela em branco, ainda sem moldura, configurava meu mundo exterior, onde apenas a linha do tempo poderia costurar outros vínculos, tecer afetos e bordar meus sonhos.


Por um segundo, vislumbrei a chance de reconhecer em meu caráter todas as nuances da coragem. Logo eu, sempre às voltas com a prudência, amante do amanhã, me deparava com a urgência do instante: conjugar-me apenas no presente. Teria sido um presente? E se fosse, estaria preparada para abri-lo?


Nada parecia natural até que percebi o inevitável. Ser forte diante da sensação de estar acuada, como uma resposta instintiva, programada biologicamente. Pensei em Darwin: pura sobrevivência. Pensei em rimas. Precisava de rimas para oxigenar a vontade. Buscar salvação na poesia. No entanto, o barulho das ondas me trouxe de volta para a praia de agora.


Caminhei em direção ao mar. Meus pés já molhados me fizeram pensar em um batismo. Sorri com esta tola idéia. E, de repente, fui invadida por um desejo imenso de ser alguém que nem mesmo eu soubesse definir. Dividida entre a força do medo e da vida, decidi realizar meus traços e ser o que sou. Não o que sempre fui, mas o que me tornei: uma mulher ainda desacostumada à luminosidade de um lugar ensolarado.


Voltei para a casa sem pressa. Tinha todo o tempo do mundo.




(*)
Imagem: Google


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Dolce Vita
Enviado por Dolce Vita em 23/05/2009
Reeditado em 09/10/2009
Código do texto: T1610801
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