UM LUGAR PARA VOLTAR
UM LUGAR PARA VOLTAR (*)
“Um lugar para voltar”. Este era o título de um filme que assisti há alguns meses. Era um drama. Drama é o meu estilo preferido, sobretudo se a história enaltece as virtudes humanas. E, como quase sempre acontece, ao final, meus olhos nadavam em lágrimas e um nó na garganta embargava a minha voz.
A protagonista - uma senhora idosa, já aposentada - vivia na companhia de seu único filho – que se apropriava de sua pensão mensal -, numa cidade distante de sua terra natal. Por isso, acalentava o sonho de, antes de morrer, rever a sua terra.
Para realizar seu sonho, teria que burlar a vigilância que seu filho e nora exerciam sobre ela. Um dia, porém, ela encontrou seu cheque de pensão no das correspondências de seu filho. Após havê-lo escondido, passou a arquitetar o seu plano de fuga. Passados alguns dias, finalmente, ela conseguiu escapar e, com uma boa dose de coragem e esperteza, empreendeu a sua viagem de volta à terra em que nascera.
Foi tocante o seu reencontro com os lugares que marcaram a sua existência. Não havia como deixar de emocionar-me vendo-a passeando pelos lugares que serviram de cenário para seus sonhos. Lá estava o que restou da velha casa onde nascera. Ali estavam algumas árvores, em cuja sombra tantas vezes brincara; os campos e campinas por onde correra. Era a materialização de um sonho há muito acalentado.
É a eterna busca do homem pela eternidade. E, por mais que a busque em outras paragens, acaba sempre indo procurá-la em suas origens. E, quando encontra algo que transcende ao tempo, tem a oportunidade de reviver as emoções mais doces de sua vida. É como bálsamo que lhe renova as forças; que o faz esquecer as vicissitudes da vida; é uma segunda chance, sobretudo, para quem já se encontra no crepúsculo da existência.
Mas, voltando à história do filme, num lance, vi-me no lugar da protagonista. Só que em outro cenário e em outro tempo. Vi-me correndo pelos campos; banhando-me nas águas turvas do velho Jaguaribe; jogando futebol em um campinho de terra batida; pegando passarinho, nas manhãs de inverno; passeando pelo mercado, nos domingos de feira; correndo atrás do “fogueteiro”, nas procissões do Santo Padroeiro; brincando em volta das fogueiras, nas festas juninas; ou com o “Judas”, na Semana Santa; com primeira namorada, em nosso primeiro beijo; nas serenatas, em noites enluaradas.
Não há como deixar de evocar tais momentos. A nostalgia, vez em quando bate à minha porta, sem pedir licença. Nessas ocasiões – que não são raras -, quedo-me a pensar nos meus anos dourados vividos em minha terra – toda a infância e juventude. Revivo cada emoção, como se fosse a última vez. E, para não fugir à regra, as lágrimas rolam sem qualquer pudor sobre as marcas deixadas pelo tempo.
Só quem não teve infância ou, por algum motivo perdeu a sensibilidade, pode desconhecer a ligação que todo homem tem com a sua terra natal – com o lugar onde foi enterrado o seu umbigo. E, por mais que ele percorra as veredas deste mundo, sempre haverá em seu coração um desejo de voltar. Voltar para a casa onde nasceu; para sentir o cheiro de terra molhada com as primeiras chuvas; para rever os amigos; para ouvir o badalar do sino da matriz; quem sabe, para acompanhar a procissão do padroeiro; para perambular pela feira do domingo; para banhar-se no mesmo rio; para fazer uma serenata, ainda que seja só para a Lua; para tomar o sereno da noite e banhar-se no orvalho da madrugada; para sentar-se nas calçadas e ficar jogando conversa fora até altas horas; para participar das quermesses e dos leilões em prol da paróquia ou para ajudar a algum necessitado; ir às cantorias só para ofertar motes idiotas e ouvir dos cantadores a mais poética reprimenda.
Infelizmente, como a personagem do filme, eu bem que gostaria de realizar esse sonho. No entanto, isso não seria possível, pois já não tenho um lugar para voltar. Lá “construíram” uma cidade sem alma, sem calor humano e sem a hospitalidade que lhe era tão característica. Quando a visito, sinto-me um estranho. Para meu desalento, a minha cidade só existe em minhas lembranças, embora continue, geograficamente, encravada no mesmo lugar.
Meses atrás, como se antevisse as possíveis conseqüências da velhice, na última visita que lhe fiz, levei a minha máquina fotográfica para registrar o que ainda restava das minhas lembranças. Pois, seus governantes, não satisfeitos por lhe tirarem a alma, tentarão destruir os gatilhos de memória que ainda nos restam.
Além do mais, fizeram de tudo para cortar os laços com os filhos mais velhos, sobretudo com os que de lá saíram ainda jovens para conquistar o mundo. Eles não sabiam que mais tarde, cada um deles, como eu, já cansados das lutas, necessitaria voltar em busca de aconchego no colo de sua terra mãe. Mas, como voltar para uma terra que desconhece seus filhos?
Onde encontrarei a minha cidade, cujas tardes-noites eram embaladas pela refrescante brisa do “Aracati”?
Onde poderei encontrar a minha terra, cujos habitantes, com ingênua alegria e verdadeira espontaneidade, celebravam a vida?
Onde acharei o lugar, onde podíamos nos sentar à calçada e “jogar conversa fora”, noite adentro?
Onde encontrarei o meu lugar, onde as donzelas, nas noites de luar, aguardavam ansiosas seus menestréis?
Ai que saudades da cidade que se acumpliciava com seus jovens amantes, permitindo-lhes que fizessem serenatas, sem risco de quebrar a paz de suas noites prateadas.
Onde a encontrarei? Onde pensei encontrá-la, vi, em seu lugar, uma cidade sem alma, sem forma e sem vida. Um lugar, onde não se pode mais bater papo nas praças e nas calçadas. Onde se é obrigado a recolher-se logo ao crepúsculo. Lá não há mais encontros, apenas desencontros. O que lhe restou foi um amontoado de pessoas, onde os amigos de ontem se tornaram adversários e, ao final, inimigos.
O que lá existe é um povoado dividido pela paixão inconseqüente da política, principal responsável pela quebra dos laços de fraterna amizade que nos unia. Em seu lugar temos intrigas, mágoas, rancor e até mesmo ódio.
Ah, se eu pudesse reencontrar o sentimento de irmandade captado em algumas fotos antigas que encontrei nos guardados de minha mãe, nas quais ainda se pode ver alguns cidadãos – meu pai inclusive – descarregando um “caminhão de cimento” para a construção da praça da matriz, hoje, destruída pela insensibilidade de seus governantes.
Como é triste não ter um lugar para voltar.
(*) Crônica que apresentei em meu curso de jornalismo na Unifor)