LIXO E LITERATURA
Vendo pela televisão o caso da crise do lixo na Itália, mais precisamente em Nápoles, onde o lixo se acumula nas ruas, causando mal estar e revolta na população, lembrei-me de cenas da infância, livros e poemas lidos.
Eu era menino e adorava andar pelas ruas e becos de Santana, calçados de paralelepípedos. A rua das canelas era a minha favorita: ali morava minha avó Arlinda, uma velhinha doce, que me punha em seu colo e acariciava meus cabelos, em inesquecíveis cafunés. Tinha ainda as ruas da Igreja de Nossa Senhora de Sant’Anna e a da Prefeitura, em cujas proximidades residia meu avô Manoel, numa casa imensa e acolhedora, para onde acorriam as mais diversas pessoas da cidade, em busca de ajuda e um bom dedo de prosa. Dessas, destacava-se Cununa, uma velha doida e desdentada, que se vestia de blusa e saia feitos de tecido de bolsa de açúcar e touca do mesmo pano na cabeça. Cununa não tinha parentes e morava só, nos monturos da cidade, junto aos urubus. Foi minha primeira aprendizagem do lixo.
As outras vieram com o tempo e as leituras. Quão importante e reveladora foi a leitura de “O Bicho”, conhecido poema de Manuel Bandeira: “Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio/ Catando comida entre os detritos./ Quando achava alguma coisa,/ Não examinava nem cheirava:/ Engolia com voracidade./ O bicho não era um cão,/ Não era um gato,/ Não era um rato./ O bicho, meu Deus, era um homem”. Como também o verso colhido da lírica de Manoel de Barros, em “Matéria de poesia”: “O que é bom para o lixo é bom para a poesia”. Por fim, dentre tantos, a leitura de “Não verás país nenhum”, romance de Ignácio de Loyola Brandão, a quem o futuro e seus mundos imaginários são meras extrapolações acessíveis ao homem de hoje. Mefítico o início da narrativa, no primeiro capítulo: “O fedor vem dos cadáveres, do lixo e excrementos que se amontoam além dos Círculos Oficiais Permitidos, para lá dos Acampamentos Paupérrimos”.
Os cidadãos de Nápoles estão preocupados com os insetos e as doenças que o acúmulo de lixo nas ruas podem trazer, daí as manifestações acaloradas contra o governo. Mas, ah, chamemos Ítalo Calvino, Dino Buzzati, Umberto Eco para, dos tijolos do feio, produzir os castelos do belo, ao bem da humanidade.