VELHOS TEMPOS, BELOS DIAS...

VELHOS TEMPOS, BELOS DIAS

Eu poderia afirmar que não tive infância e não estaria mentindo. Juntos ou separados, meu irmão gêmeo e eu passamos todo o período de estudos em internatos variados, a começar pela creche da Paróquia de N. S. de Copacabana, sustentada´pela caridade de madames e fiéis.

Não tenho do que reclamar: o que se perdeu em liberdade e "joie de vivre" ganhei em saúde e sobrevida, com boa alimentação e cuidados médicos. Nos estudos obrigatórios adquiri cultura, fora a educação rígida e "arranhei" idiomas estranhos como o polonês, francês e latim.

De cada "estação" ficou uma lembrança, mero registro doloroso ou divertido da "prisão" momentânea em que me encontrava. Em todas, um só senão: a ausência dos pais, sempre distantes, às vezes em outro Estado.

Não vinham nem para nos buscar nas férias de fim de ano, quando o colégio encerrava as atividades. Primos ou vizinhos de nossa tia "resolviam" o problema.

Num Mundo que, apesar das dengosas Evas, já nasceu masculino, um colégio interno pode ser um ambiente bastante divertido, apesar do espaço exíguo se considerarmos a imensidão fora das grades.

Da creche (com 3, 4 anos ?!) lembro muito pouco: a sesta após o almoço, num mar de cadeiras de praia que tomava todo o enorme salão. Recordo os banhos de luz azulada numa máquina apavorante, óculos escuros escondendo o medo, e também a cadeira do dentista, com uma janela sanfonada que deixava entrever a pracinha em frente.

Desse distante passado restou uma foto de "aluno" aplicado, lápis sobre o caderno aberto e um ábaco de brinquedo enfeitando a mesa. Sei que fomos reportagem de jornal carioca, quando a petizada visitou em excursão a jaula dos elefantes na Quinta da Boa Vista.

Se ficávamos sozinhos no barraco a vida virava uma festa só. Pegava-se carona nos caminhões que desciam cautelosos o Morro, fumávamos "guimbas" de cigarros catados nas calçadas e vivíamos de estrepolias que levaram meu irmão ao hospital, clavícula e braço quebrados rentes às rodas de um possante GMC. (leia-se "gemecê")

Graças aos "Cosme e Damião" -- PMs aos pares em ronda que fez história no Rio dos anos 50 -- acabamos no SAM (espécie de FUNABEM) para desespero de minha mãe, 3 meses à nossa procura. O lugar era horrível, serviam macarrão estragado e havia grades por todos os lados, cercando até o escritório do Diretor.

Meu pai encerrou a questão "raptando-nos" do barraco à revelia da genitora, para nos internar nas Escolas Reunidas São João Batista, nos confins do Brasil, em Santa Catarina. As Irmãs Vicentinas nos receberam de braços abertos -- os primeiros cariocas da histporia do Colégio... e gêmeos, ainda por cima -- e providenciaram roupas de inverno e cobertores, pois nosso enxoval era para férias nas praias havaianas.

Velhos tempos, belos dias... foram quatro anos inesquecíveis, com internato misto no 2º ano (1962) para alegria da gurizada e pavor das Madres. Em pouco tempo "acabou-se o que era doce"... mas o sótão do galpão de aulas ainda guarda estórias cabeludas dos que o "visitaram".

Era tempo de Jânio e sua vassourinha dourada, dos panfletos das Casas Pernambucanas, do enorme sabonete "Vale Quanto Pesa" e do programa "Aliança para o Progresso" do esperto JK americano, abarrotando colégios de óleo de cozinha e barris de leite em pó que a umidade invernal estragava em poucos meses.

Dos "Estêites" só queríamos a mini-bola de gude com uma hélice colorida dentro, o "olhinho", como a camávamos. Valia meia dúzia das comuns e, quanto menor, mais valiosa.

A Dirce -- filha do comerciante mais importante do vilarejo Alto Paraguaçu -- presenteou-me com uma gigante, 3 cm de altura, para despeito de meio colégio e mais um apontador em forma de globo terrestre... tudo por uma migalha de meu "amor" infantil, mas eu só tinha olhos para a walkiriana Elizabeth, loura com estrelas azuis sob os cílios sensuais.

Coisas da Vida: pouco depois me surgiria uma "pereba" incurável na canela e acabei sem nenhuma. Tempos patrióticos aqueles... o Hino Nacional cantado todo sábadso pela manhã e os demais hinos quando a época formal se apresentava.

Passamos incólumes (naquele fim-de-mundo !) pelos sucessos do malfadado 31 de março de 1964 e tudo o que ocorreu em seguida. As Irmãs eram professoras de todas as matérias, um só livro durante os 4 anos do primário e muita lição de casa, 6 ou 8 páginas ao dia.

Castigo na escola, nem pensar... apanhava em casa quem demorava a voltar das aulas e levar bilhetinhos da mestra para os pais era o terror de qualquer guri. Corrigia-se os errados com 200 ou mais linhas de "NÃO DEVO.................NA AULA" (ou na classe), na época da caneta-tinteiro e do milagroso mata-borrão. Velhos tempos...

As brincadeiras, para os internos, apenas no intervalo após o almoço ou à noitinha. Pique-bandeira e "queimado" eram as principais, mas havia o "cavalo de guerra" -- duplas se derrubando, um nos ombros do outro -- e as raras "peladas", com o padre-fotógrafo Victor Pascek a esconder a bola sob a batina. (Ao soar do sino largava-se tudo e, perfilados, rezávamos na hora da Ave-Maria ou Hora do Ângelus.)

No dormitório, após as orações, guerra de travesseiros e, vez em quando, o "trenzinho", espécie de "meia" em grupo, mas a prática não tinha dia nem hora. Soube que usaram até o catafalco como cama.

Missa diária bem cedinho, em fila indiana para a colossal "catedral" ao lado, cortando a cerração gelada com os narizes vermelhos.

Tortura maior que lavar o rosto de manhã com a água congelada da bacia só mesmo almoçar uma tal de "tatarka", massa escura feita de grãos de trigo e arroz integral, da pior culinária do mundo, a polonesa.

Enquanto alguém distraía a cozinheira, os demais passavam seus pratos ao que estivesse mais próximo do buraco no assoalho do refeitório, para deleite das ratazanas, vermes e insetos.

Os mais comportados eram promovidos a sacristãos, com paga nos domingos e dias santificados e a escolha recaía sempre nos gêmeos -- nós, mais Elói e Wagner -- para azar dos demais.Missa do 7º dia ninguém gostava... tínhamos que arrastar imenso caixão (o "catafalco") para o adro interno da igreja,com estrado de toneladas e, ao fim do sacro ofício, retirar tudo.

Bater os sinos a cada 6 horas também era nossa responsabilidade. E encher as galhetas de vinho, tarefa disputada a tapas.

A gente quase sujava o "short" para dar a primeira badalada e, às 18 horas, o prazer virava suplício. Os morcegos debandavam em massa roçando-nos a nuca... um deles chocou-se com meu covarde nariz. Mergulhei sem hesitar no vão entre as escadas, descendo corda abaixo qual esquilo. A pele das mãos ficou no cordame rude, como lembrança. Até hoje o interior das igrejas me parece o local ideal para a reunião de demônios. Onde mais podem êles conquistar almas, senão quando elas tentam ser um pouco melhores?

Ser sacristão tinha suas vantagens: almoçava-se vez ou outra com os padres na Casa Paroquial, podia-se comer as sobras das hóstias e passear no jipe deles. Só era ruim ter que lavar a colossal igreja ou suportar, de frente para a multidão, os compridos sermãos dominicais do Pe. Lauro, espécie de Moisés redivivo.

Polonês de cabelos vermelhos e olhar em fogo, fazia estremecer o púlpito reverberando os pecados dos fiéis. Estragava o domingo da maioria, os machos amassando os chapéus nas mãos calosas e voltando às suas casas sérios e calados. Deus deve ter reclamado dos exagêros do pároco, que apressou a morte de muitos cristãos, por problemas cardíacos, graças aos seus berros.

Às vezes me pego a sorrir, recordando esses momentos todos. Tem muito mais a contar, pois éramos escolhidos para representar o colégio em tudo, nos desfiles e festas. no aniversário dos padres e até em peças "teatrais".

No último ano (1964) resolvemos de comum acordo boicotar a peça de encerramento das aulas. Fazíamos um general e seu ordenança, os poltrões, que apanhavam das espôsas no final. (Sem rádio nem jornais no vilarejo, as Irmãs não ficaram sabendo do golpe militar meses antes.) Erramos falas nos ensaios, "esquecemos" cenas, relaxamos treinos mas a peça foi encenada ainda assim, para nosso desespêro.

Fiz também um caipira voltando da cidade grande para contar as novidades: "Chegue seu Zé, chegue Mané,/ venha o Pedro e o "Bastião"/ que seu Juca vai contá/ o que viu na capitá,/ pois tem coisa de fazê inspantação!" Foi por essas e outras que adquiri um trauma de palcos e peças.

Aliás, naquele mesmo ano o salão da Casa Paroquial foi testemunha da ira santa de um missionário capuchinho que catequizava com bolas de basquete (habilmente manipuladas) e filmes em geral, em tela grande e com som, novidade para encher dois salões.

Senhor da platéia, êle discorria sobre as dificuldades da catequese na África, imagens de casebres de estuque e couro com os "selvagens" circulando. De repente, ao fundo, surge imenso leão que põe todos a correr feito baratas tontas.

A fera rasga as choupanas como papelão e sai de uma com um garoto atravessado na bocarra. Deita o corpo bem em frente à câmera, leva parte do estômago e some. Enquanto a criança esperneia nos estertores da morte, o teto vem abaixo ao pêso das gargalhadas.

Desligado o projetor, o "barbudinho" passa "um sermão" na platéia. Logo em seguida cenas da Segunda Guerra Mundial... mais "baratas" correndo apavoradas de outro monstro, os tanques alemães na capital polonesa arrasada. Sorrisinhos presos nos cantos da boca, as bochechas inchadas pelo esfôrço.

Na parede iluminada um infeliz escorrega nas pedras e cai sob as "rodas" do Leviatã de aço, que lhe esmagam a cabeça, com os braços e pernas espadanando no espaço. As paredes tremeram ao som dos uivos da patuléia, enquanto o sacerdote ensandecido saltava do balcão sobre os espectadores, espumando de ódio. Nunca mais vi um padre com raiva...

Mas as melhores lembranças vêm das excursões, duas ou três ao ano. Quem não lembra da única vez em que se viu mulher careca, quando o vento jogou longe o chapéu-canoa da Madre Superiora, a severa Irmã Helena?

A gargalhada foi geral, a festa acabou ali e a vaidade feminina da esposa de Cristo a fez chorar por vários dias. E quando o caminhão de "saúvas" infantis parou bem debaixo da ameixeira mais querida do sitiante que convidara o colégio? As frutas "sumiram" em segundos e o "polaco" pulou a varanda aos berros, dizendo coisas estranhas. Aquela excursão também acabou antes de começar !

E quando um outro "cacareco" com quase 50 crianças na carroceria começou a descer de ré a ladeira escorregadia? Tivemos que saltar e empurrá-lo, os garotos maiores somente, patinando no lamaçal.

Mas a visita ao Museu dos Capuchinhos, em Rio Negro/PR, se tornou inesquecível... valeu a pena o susto: Como dizia a canção: "ai,ai,ai,ai,/ são belos tempos que não voltam mais!"

"NATO" AZEVEDO