A tragédia de Mari
A defesa da propriedade da terra e do poder político que dela emana, historicamente, no Brasil, foi feita na base das armas dos pistoleiros e jagunços, a serviço dos coronéis que, como os senhores feudais, usavam e abusavam da violência, com suas milícias. As milícias dos coronéis no Nordeste do Brasil, tornaram-se uma instituição, usadas, juntamente com a polícia e até o Exército, para combater quem lutava pela terra. Canudos foi um dos primeiros exemplos. Depois, na época da ditadura, as Ligas Camponesas foram combatidas da mesma maneira.
No dia 15 de janeiro de 1963, deu-se o mais grave choque entre trabalhadores rurais, polícia e milícias armadas do latifúndio. Foi no município de Mari, distante 10 quilômetros de Sapé, onde pontificavam os conflitos entre camponeses e latifundiários, estes últimos cognominados “grupo da Várzea”, formados por usineiros e plantadores de cana da várzea do rio Paraíba.
O jornalista Nelson Coelho foi testemunha ocular do episódio, e conta todos os detalhes no livro “A Tragédia de Mari”. O livro tem prefácio de Dom Antonio Fragoso. Uma frase do bispo: “Um povo vai sendo construído quando resgata a memória do seu passado”.
Resumindo, os trabalhadores rurais estavam se organizando em seus sindicatos, e resolveram realizar mutirões para plantar milho e feijão, já que o inverno de 1963 prenunciava ser favorável. Os camponeses visitavam as fazendas, convidando os companheiros para esses mutirões para o preparo das terras férteis. Isso incomodava os conservadores proprietários, preocupados com a união dos trabalhadores.
O sindicalista Antonio Galdino da Silva, conhecido como Carioca, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Mari, ex-Liga Camponesa, recomendou aos seus liderados que convidassem os companheiros para um mutirão na fazenda Olho D’água, pertencente ao senhor Manoel de Paula Magalhães. O empresário Nezinho de Paula, filho de Manoel de Paula Magalhães, vereador à época e genro do prefeito Pedro Thomé de Arruda, de Mari, que na oportunidade administrava a fazenda, disse: “permitimos que os camponeses permanecessem na terra e semeassem milho e feijão, desde que não plantassem bem de raiz”. Depois da tragédia essa ocupação foi legalizada através de cessão de usufruto.
Pois os camponeses foram cercados na fazenda Santo Antonio por dois funcionários portando armas de grosso calibre. Após discussão violenta, os camponeses desarmaram o administrador Arlindo Nunes da Silva, tendo seu companheiro fugido. Do administrador foi tomado um revólver marca Smit & Wesson, calibre 45, novinho em folha, pertencente ao Exército Brasileiro. Os trabalhadores penduraram um chocalho no administrador e o libertaram. O chocalho era o símbolo do traidor, do cara que lutava contra as demandas dos camponeses, apesar de ser quase da mesma classe social.
Esse incidente assanhou o vespeiro dos proprietários rurais da região, liderados pelo usineiro Agnaldo Veloso Borges, um homem famoso pela valentia e atos de brutalidade, sendo acusado da morte de um líder camponês, Pedro Teixeira. O industrial Renato Ribeiro Coutinho sabia da gravidade da situação criada, pois tratava-se de uma arma privativa do Exército e que estava em poder dos trabalhadores. Uma comitiva saiu da Usina São João para negociar com os camponeses na fazenda Olho D’água, em Mari. Eis o diálogo entre Fernando Gouveia, gerente da Usina, e Galdino, líder dos camponeses:
- Galdino, você tem a arma que foi tomada na fazenda de dona Anunciada?
- Tenho, doutor Fernando.
- Eu vim buscar a arma, ela pertence ao doutor Renato – retrucou Gouveia.
- Pois não, doutor, aqui está a arma – respondeu Galdino, entregando o revólver.
Nesse instante, um tal Sargento Pinto, portando uma metralhadora, gritou para os homens da usina enchocalhar Galdino. Nisso deu-se a confusão, tiroteio e gritaria. Galdino foi o primeiro que tombou com uma bala no coração. O gerente da Usina levou uma enxadada na cabeça, morrendo instantaneamente. Ao término da briga, restaram oito pessoas mortas no local, duas outras morreram no hospital de Sapé, e o soldado José Tomaz da Silva, do destacamento de Mari, que chegou logo depois no local da tragédia, levou um tiro e também morreu.
O governador do Estado era Pedro Gondim, que foi duramente criticado pelas forças reacionárias da Paraíba, as quais aproveitaram o incidente para botar lenha na fogueira do golpe militar que já se preparava na ocasião. Com efeito, um ano depois os militares tomam o poder no país, cassam os mandatos dos parlamentares tidos como esquerdistas, prendem os líderes dos trabalhadores, fecham as instituições, promovem todo tipo de perseguição e tortura contra presos políticos e fazem cair um véu negro na democracia do Brasil, que durou mais de vinte anos.
Simbolicamente, na cidade de Mari, um homem chamado José Martins de Lima assume o sindicato dos trabalhadores rurais, servindo de “veludo entre dois cristais” naqueles atritos entre trabalhadores e proprietários rurais, sob os auspícios da nova ordem. Até hoje, mais de quarenta anos depois da tragédia e do golpe militar, Martins ainda se mantém como presidente do sindicato, patriarca de uma família que hoje empalma o poder político na cidade. De Galdino e seus companheiros, nunca mais ninguém falou.