EXÉRCITO DA SALVAÇÃO
EXÉRCITO DA SALVAÇÃO
Quando se vai envelhecendo dizem que a lembrança de fatos & coisas do passado se torna mais viva e presente no que resta de nossos dias.
E, como diria a canção, "um dia a mais, quem sabe pode ser um dia a menos" no meu caso, que já vivi 55 outubros sem ter muito do que reclamar. Como minha memória anda mais ativa do que nunca, acho que estou ficando velho.
Toda minha infância e juventude foi passada, sem intervalos, entre internatos variados e casa alheias. O barraco num morro de Copacabana -- onde nasci e no qual vivi até os 6 ou 7 anos -- só voltou a ver meus ossos aos 15 anos e pouco, quando tornei a ter família, mãe e dois irmãos meio desconhecidos.
Mas, pulemos essa parte, que esta crônica não tem a intenção de servir de muro de lamentações. Embora carioca, se eu tivesse um pouco do hiper-ufanismo de paraenses, baianos e (porque não ?!) de gaúchos elegeria Rio Negro, no extremo sul do Paraná, como "minha" terra.
Na cidadezinha (à época, 1959 ou 60) com imenso rio de águas marrons e belas pontes de ferro nadei, fiz "caçadas" de coisa nenhuma, roubei uvas no potreiro de um idoso que morava longe de tudo, capturei dezenas de vagalumes que ficavam em potes de vidro até a morte por asfixia e fiz tudo o que qualquer menino (guri ou piá, como se dizia) do interior faria.
Nas férias, quando meu irmão gêmeo e eu não estávamos em algum colégio interno, passávamos os dias na casa dos tios, trabalhando um bocado nos afazeres domésticos para compensar as despesas.
Comíamos como esfomeados, nas primeiras semanas "demos fim" na adorada coleção de compotas de pepinos, pêssegos e maçãs da tia Anita -- depois trancada a sete chaves no armário da dispensa -- e devorávamos colheradas de banha de porco, de uso muito comum naqueles belos tempos.
Bem, estas mal traçadas linhas têm por objetivo falar da principal figura da casa, 1,90m de massa e energia conduzindo uma enorme cabeça já com alguns cabelos brancos. Era impossível ignorar aquele caixeiro-viajante -- espécie de "prestação" nos dias atuais, mas que só portava um mostruário -- quando êle estava em casa.
O "golias" CINCINATO Figueiredo, de quem herdei o escdrúxulo nome -- que passou para um dos meus sobrinhos (e espero que pare por aí!) -- virava a casa do avesso nos poucos dias em que lá ficava. Adorava um "buraco" ou canastra, não passava sem cerveja e fumava como uma locomotiva.
Entretanto, era na cozinha que mostrava todo seu talento. De tudo êle entendia um pouco: de assados a ensopados, de beringelas fritas a uma suculenta macarronada. Tempêros perfeitos, comida no ponto, feijoada engrossada no liquidificador, com uma pitada de maizena.
Eu mantinha o fogão a lenha no máximo, as 4 bocas cuspindo fogo, com as paredes de madeira da casa "suando" no calor infernal. Tio Nato, como nós o chamávamos, só não fazia pão, especialidade da beata esposa, a qual nunca vi chamá-lo por outra coisa que não fosse "meu velho".
A cada almôço ou jantar a casa jamais tinha menos que 6 ou 7 pessoas à mesa, o mais velho puxando oração de agradecimento "pelo alimento que vamos receber".
Com as travessas postas na mesa, tio Nato não dispensava a chance... abria a bocarra e estrondava o bordão costumeiro, o som da voz a estremecer paredes:
-- Exército da Salvação... a "gororoba" está na mesa !, enquanto nós e o primo Osmar (o "reizinho" da família) avançávamos até as cadeiras. Às vezes, outros primos que moravam mais adiante também se apresentavam.
O "seu" Nato era pessoa absolutamente tranquila, cordata e delicada, exceto quando jogava baralho. Daí, virava um leão enjaulado. Já entrava no jôgo excitado, nervoso, falando alto e fumando desbragadamente.
Em época em que 8 da noite "era hora de guri estar na cama" -- víamos "O Sheik de Agadir" ou "A Ponte dos Suspiros" pelas frestas da parede, porque criança não podia ver novela -- o tal jôgo de baralho ía até quase meia-noite.
Tio Nato era um excelente jogador e, exímio com o lápis, incumbia-se de anotar as intermináveis contas do "buraco" ou canastra... que até hoje não sei se são a mesma coisa.
Sempre errava a seu favor, detestava "gente de saia" como parceiro e deixava tia "Nica" (como êle carinhosamente a tratava) uma "arara" com seu costume de levantar a ponta da carta de baixo para ver o naipe dela e quem a pegava.
Dona Anita enchia os pulmões, dava um longo assobio sob o discreto "bigodinho" e disparava a metralhadora:
-- Meu velho, assim não é possível... você está rrrrrrrroubando !
Tio Nato parecia um castor encurralado! Com os 4 dentões de baixo a morder com força o lábio superior, a mãozarra batia forte na mesa fazendo tilintar os copos:
-- Vocês, mulheres, não são de nada! Só prestam para cuidar da casa... baralho é coisa de homem!, e perguntava aos demais convidados, bastante constrangidos, se tinham visto algo errado.
Os parceiros eram quase sempre os mesmos: as vizinhas meio japonesas, filhas da dona Nadir, meu sisudo tio José, o comerciante José Comte -- que fornecia o café e as cervejas -- e quem mais estivesse pelas redondezas.
Rio Negro está cravado em meu coração como aquelas flechas de filme de índio americano e a imagem de meus queridos tios resplandece no quarto escuro, em longas noites, insone.
Se, hoje, escrever é um dos meus raros prazeres entre tantos dissabores, devo isso à minha tia Anita (nascida Ana), primeira incentivadora (e leitora) de meus versos.
Felizmente saí da cidade antes que estes e outros entes queridos -- como o enjeitado (alcoólatra ?!) primo Joãozinho -- virassem lápide no cemitério local. Não tive o desgôsto de vê-los hirtos e frios num caixão, tão mortos quanto as flores que os enfeitaram.
Guardo deles as melhores recordações, vivos e sãos a meu lado.
Ainda garoto, buscaram-me no colégio interno para ver minha avó paterna num esquife na sala, surpresa macabra ocultada durante toda a longa viagem. Desmaiei no instante em que a vi e acordei na cozinha, cercado de biscoitos e curiosos.
Que me perdoe quem está me lendo, mas considero cemitérios um equívoco, pois deveríamos recordar os que se foram VIVOS em nossas lembranças e não como pó ou cinzas.
Antes de partir "desta para a melhor" espero retornar à cidade de Rio Negro, ondedeixei meu coração e quase toda a felicidade de minha solitária existência.
Ao menos para "rever com emoção os verdes campos do lugar", no dizer do poeta, embora já não haja trens e nem sequer Estação.
"NATO" AZEVEDO