ELOÁ, DESDÊMONA E CAPITU

ELOÁ, DESDÊMONA E CAPITU

Ao ver a brutalidade com que os negros africanos eram tratados nos navios negreiros, Castro Alves brada: “Senhor Deus dos desgraçados!/ Dizei-me vós, Senhor Deus!/ Se é loucura... se é verdade/ Tanto horror perante os céus?!”. O mesmo nós fazemos cento e trinta e nove anos depois, diante da televisão, ao ver as cenas de Santo André, no ABC paulista. Em Close e a cores – uns inclusive em TV digital de alta definição – assistimos o seqüestro, recorde em São Paulo: 100 horas de duração, e a morte de Eloá Pimentel, de 15 anos, com um tiro na cabeça, cometida pelo ex-namorado, Lindemberg Alves.

Segundo os noticiários, o crime hediondo foi motivado pelo ciúme patológico que Lindemberg sentia de Eloá. Triste fim de um romance. Quase que semelhante ao de Romeu e Julieta, não fosse o seguinte detalhe: o amor de Romeu era puro e verdadeiro e não doentio como o de Lindemberg. Roberto Carlos bem que tentou alertar contra o perigo das pessoas ciumentas. Anos atrás ele cantou: “Esse telefone que não pára de tocar/ Está sempre ocupado/ Quando eu penso em lhe falar/ Quero então saber logo quem lhe telefonou/ Que disse, o que queria e o que você falou/ Só de ciúme, ciúme de você/ Ciúme de você, ciúme de você”. Pena que as autoridades não ouviram.

Já que tocamos em Shakespeare, vale a pena lembrar outra tragédia sua: Otelo. Eu li essa peça na década de noventa, quando adquiri uma coleção de obras primas da literatura universal, publicada pelo Círculo do Livro. Literalmente, ela é também um alerta à questão do ciúme e sua dramaticidade, escrita com maestria pelo mestre inglês. Eis a síntese: Otelo, o general mouro de Veneza, é prisioneiro da cor de sua pele. Por seus dotes militares, é tolerado, mas não aceito pelos venezianos, que nutrem com relação a ele sentimentos racistas. Otelo está ciente desse preconceito e se sente inseguro. Para dissimular sua insegurança, comporta-se de modo grosseiro e impulsivo, a ponto de intimidar sua própria mulher, Desdêmona. A insegurança de Otelo faz com que seja receptivo às intrigas de Iago, que desperta seus ciúmes, insinuando um romance entre Desdêmona e Cássio. O ciúme se intensifica ao longo da peça e culmina com o assassinato de Desdêmona pelo marido. Uma acuada Desdêmona não pode também fugir a seu destino, como Otelo não pode fugir do crime e de sua autodestruição. Essa peça foi representada em 1604, mas como continua atual!

Outra que sentiu na carne a aguilhoada do chicote do ciúme foi Capitu, a heroína machadiana de “Dom Casmurro”. Nessa obra, o ciúme é revelado por meio das metáforas do olhar. Marília Etienne Arreguy, Doutora em Ciências Humanas e Saúde pela UERJ, explica isso em “Dois romances, tempos distintos: uma reflexão sobre o amor e o ciúme na atualidade”: “Antes de sentir ciúme, o olhar dos outros para Capitu era como um “dever de admiração e inveja” (Assis, 1899), de cujo mérito Bentinho se regozijava, revelando, com isso uma identificação narcísica com a amada. Mas, para além do olhar dos outros direcionados a Capitu, há a tensão do olhar dela (ou dele) dirigido aos outros, gerando a cólera do ciúme em Bento”.

Eloá, Desdêmona e Capitu, vítimas do ciúme patológico de seus parceiros: é a arte imitando a vida ou a vida imitando a arte? ou ambas as coisas, na contramão da humanidade? Busco, mas não encontro respostas. resta-me, ao menos, a solidariedade ao luto.