Testemunha profissional
Começou meio por acaso, ouvindo o sufoco de um amigo que penava em encontrar uma testemunha para um caso que lhe renderia bons dividendos. Se achasse uma...
O trabalho em três empresas em duas cidades produzia mais prejuízo do que lucro. Desde os tempos do doutorado a esposa, crente de que o marido enriqueceria, planejava viagens ao estrangeiro e a aquisição de alguns produtos franceses de beleza. Pinturas para os cabelos, para as faces, cremes para as mãos, os ombros e as costas, máscaras anti-envelhecimento.
Dois anos de lutas diárias para manter o orçamento com um pouco de folga levaram a esposa às lágrimas, ora pelo carro (ainda sendo pago), ora pela casa (aluguel quase sempre atrasado), ora pela viagem a Paris (perdida em algum arquivo de sonhos). Aos fins de semana, pastel oleoso com suco de laranja numa barraquinha do Parque.
Curioso, perguntou quanto pagaria para testemunhar uma vez.
- Sete mil reais.
Sete mil reais para falar quinze minutos numa tarde correspondiam a quase três vezes o que ganhava trabalhando quarenta e cinco dias. No início a esposa rechaçou a hipótese, ponderou das implicações penais, reclamou do desvio de conduta, da falta de ética e de comprometimento com a justiça. Mudou de opinião quando viu as parcelas do carro adiantadas, jantou em restaurantes de revistas, o senhorio a cumprimentou efusivamente na fila do correio e o dono do supermercado enviou folhetos com ofertas do dia acrescentando, à mão, que poderia passar cheques diretos para trinta ou sessenta dias.
Abandonou as empresas, encerrou o título de doutor embaixo do colchão, livrou-se da biblioteca de três mil e quinhentos volumes (livros, revistas, jornais, anotações, fotos, discos), jogou no lixo as angústias financeiras e abriu uma consultoria testemunhal.
A consultoria funcionava perfeitamente e empregava cinco pessoas: ele, a esposa, a sogra, a cunhada e uma amiga de faculdade que, mesmo qualificada academicamente, abriu mão de vaidades intelectuais para se dedicar exclusivamente ao empreendimento que não lhe rendia menos de cinco mil e quinhentos reais.
Outra noite, durante um jantar, alguém perguntou se sua empresa não feria os princípios da moralidade. Ele baixou a cabeça, pensou um pouco.
- Os ditadores brasileiros tinham princípios e mataram dezenas de milhares de pessoas. Hitler possuía princípios que considerava nobres, livrou-se de milhões de judeus, de deficientes físicos, de ciganos e de homossexuais. O ex-presidente Bush se diz cristão, mas que homem de princípios cristãos permitiria que outros homens fossem afogados em caixas d’água, sofressem choques elétricos e agressões em seus órgãos genitais, tivessem suas famílias destruídas, seus bens confiscados e sua dignidade violentada?
O interlocutor parou de sorrir. O jantar prosseguiu. Caviar, vinho do Porto, queijos franceses e chocolates suíços pagos em euro.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 21 de maio de 2009.