As minudências de Arnaud Costa
O Juiz de Direito Marcos William viveu a sua juventude em Itabaiana, onde deu os primeiros passos como cultor do Direito, ao lado do meu pai, Arnaud Costa. Vilinho, como era conhecido, foi carnavalesco e esportista, além de boêmio na terra do poeta Zé da Luz. No seu livro “Por um ocaso azul”, Marcos William lembra, na crônica denominada “Minudências”:
“Após a minha formatura, em Recife, no ainda bem próximo ano de 1973, voltei à terrinha, não mais de férias, mas com o ânimo de residir, casado que estava de pouco. Na mente, apenas sonhos de um advogado fresco e a enorme inexperiência a desafiar a subsistência. Havia apenas em Itabaiana um advogado formado: o inesquecível e digno Dr. Veloso. De outra ponta, exercia com maestria o exercício da advocacia o amigo Arnaud Costa. Por não ser diplomado recebia o nome de rábula.
No que pese a feiúra da palavra, não tem sentido pejorativo ou desqualificador em relação ao inteligente cultor do Direito. Foi com Arnaud Costa que dei os primeiros passos na prática do Direito Penal e Processual. De logo, nos tornamos amigos e passamos a rabular juntos. Eu, com a minha enorme vontade de vencer e a inexperiência de quem sai da faculdade, nesse país onde a educação não é gênero de primeira necessidade. Arnaud com sua vasta folha de fianças, júris e Habeas Corpus nas terras de Zé da Luz e alhures. Foi Arnaud quem me ensinou a grafia correta da palavra privilégio!
Juntos enfrentamos grandes promotores de justiça. Acusadores preparados e cultores do Direito como a brilhante Dra. Maria de Jesus Bezerra, o inesquecível Dr. Walter Agra e o hoje Corregedor-Geral do Ministério Público, o não menos ilustre Procurador Dr. João da Cruz.
Guardo na lembrança embates memoráveis no Fórum Judiciário que se localizava no antigo prédio da Prefeitura Municipal, hoje Câmara de Vereadores. Por ali passaram advogados ilustres e da estirpe do Dr. Pedro Gondim, Vital do Rego, Nizi Marinheiro, Dr. Amaury Vasconcelos, Geraldo Beltrão, que aliás, por algumas minudências não veio fazer o júri de Romeu, deixando-me com a garganta seca de um nervosismo de principiante, uma vez que figurávamos no processo como defensores e eu apenas ainda era um estagiário do 4º ano de Direito, sendo aquele o meu primeiro júri.
Guardo bem viva na lembrança as citações doutrinárias e os brocárdios jurídicos que colocávamos nas nossas petições. Era sintomático: sempre que ia requerer alguma soltura, Arnaud crescia em estatura e ansiedade. Seus olhos pequenos faiscavam e seus gestos se tornavam quase desordenados numa pressa de fazer esquecer a própria petição de soltura!
Lembro-me bem de certa vez em que requeri um alvará judicial para uma senhora já idosa e doente. Após a sentença e com o alvará nas mãos, a velhinha foi à minha casa e indagou-me quanto me devia. Percebendo que a coitada não tinha nada me pagar além do que ia receber do banco, disse-lhe apenas em tom de chacota que me desse o dinheiro do leite para os meus filhos. Para meu espanto, no dia seguinte, ela chegou em minha casa trazendo nas mãos uma lata de leite em pó, profundamente agradecida!
De outra, e esta nomina estes breves apontamentos, voltávamos da cidade de Ingá onde tínhamos participado de um júri. Arnaud dirigia o velho fusca cavalo-de-batalha de nossas andanças. Na altura de Mogeiro ele parou o veículo e pediu-me que aguardasse um pouco. Após uns bons quinze minutos, saiu de uma residência tosca ao lado da estrada e retomamos o caminho de volta. Indagando o que estava ocorrendo, o mestre Arnaud cm um sorriso largo e atritando o indicador com o polegar, me disse:
“—Fui ali resolver algumas minudências...”
E assim dizendo, deu-me a parte que me tocava, enquanto o pequeno veículo saltava nas costelas da estrada empoeirada.
Os elogios que me fez traduzem mais a grandeza de quem os aponta do que o merecimento de quem os recebe.
Com a chegada a Itabaiana de novos colegas advogados e a proibição legal do exercício da advocacia para os não titulados onde houvesse advogado residente, Arnaud abandonou as lides, deixando um legado de bem redigidas peças processuais que estão nos escaninhos dos nossos cartórios, fazendo parte da história jurídica da terra. A esmagadora maioria delas foram feitas sem as inesquecíveis minudências, pois Arnaud gostava de ajudar os pobres e menos favorecidos da sorte”.